Deixem-me contar-vos uma história:
Há muitos anos, o maior grupo de livrarias nacional foi comprado por uma editora estrangeira. Na mesma altura surgiam por todo o país as ditas grandes superfícies (hipermercados). Em pânico, os pequenos livreiros pediram ajuda ao Estado. Já estavam a ser esmagados pelas grandes superfícies (aparecidas há poucos anos) que davam descontos enormes aos compradores e compravam livros em grandes quantidades aos editores que assim escoavam os seus fundos rapidamente.
Implementou-se uma «Lei do Preço fixo do Livro» (1996) copiada de uma lei francesa. Essa legislação tinha por objectivo (declarado) proteger os pequenos livreiros, editores e o cliente final - diziam. Nunca o fez.
As grandes cadeiras de livrarias e as grandes superfícies violam regularmente essa lei e as multas são ínfimas convidando à prevaricação.
O efeito concreto que teve foi a des-liberalização do mercado que resultou no encerramento de centenas de livrarias e com que vários pontos de venda de livros, como papelarias-livrarias e quiosques, abandonassem o livro como produto. Porquê? perguntais-me vós...
É simples:
a) o pequeno livreiro deixou de poder negociar com a editora as suas apostas. Afinal de que serve negociar se o desconto final é igual para todos?
(Não se esqueçam que há um desconto comercial que não é regrado legalmente: o desconto que o editor faz ao livreiro. Uma livraria independente exige descontos a rondar os 35 a 40% sobre o preço de capa do livro e as grandes cadeias e superfícies pedem descontos que podem ir até aos 60 e tal %.)
b) as livrarias independentes que tinham bons livreiros (aqueles à moda antiga) viram-se em igualdade de circunstância (aparentemente apenas, porque o desconto comercial era diferente) com as grandes cadeias e as grandes superfícies. Assim, em vez de usarem a experiência dos seus livreiros (à moda antiga) que encomendavam os livros de acordo com o perfil da livraria e do seu público, começaram a encomendar tudo. E se encomendavam tudo para conseguirem chegar a todo o público, para que é que precisavam de um livreiro experiente e conhecedor (e com ordenado inerentemente mais alto)? Estes foram reformados ou despedidos, substituídos por miúdos que não liam nem sabiam nada de livros mas que aceitavam trabalhar por tuta e meia.
O resultado - e é pena que não haja dados para termos números concretos - foi o encerramento de dezenas de livrarias independentes nos 7 anos seguintes à implementação da Lei. E de o livro ter desaparecido como produto habitual de papelarias-livrarias e de quiosques.
Quem tudo quer, tudo perde: o público fiel das livrarias deixou de o ser porque as livrarias se generalizaram e, como tal, de descaracterizaram; o público generalista prefere ir às grandes cadeias ou às grandes superfícies pois, obviamente, na maré de novidades, estas têm mais espaço e quantidades.
As livrarias independentes tentaram meter o Rossio na Betesga sem sucesso. Não tinham espaço e, mesmo quando este até suportava as novidades quase todas, não conseguiam ter muitos exemplares de um livro e, sem livreiros experientes, que soubessem analisar o interesse do público local, este, muitas vezes, pedia um livro cujos 1 ou 2 exemplares tinham já sido vendidos perdendo-se a oportunidade de venda.
E assim foi, de lá para cá. Violações sucessivas da lei pelos "grandes" e livrarias independentes a fechar pois perderam identidade.
A entidade responsável pela aplicação da lei (o IGAC) nunca teve meios para exercer um controlo efectivo. Faz inspecções de tempos a tempos e multa com valores ridículos os prevaricadores que nem sequer se sentem obrigados a "retirar" a campanha.
Mas os efeitos nefandos continuam: o livro passou a manter-se com preço fixado por 18 meses. Na maior parte dos países que tinham adoptado a medida, esse prazo era muito inferior. Qual é então o problema de 18 meses de duração do período de preço fixo?
Vejamos: estamos num mercado voltado para a novidade, onde a rotação rápida do produto é evidente. Publicam-se muitos livros e as livrarias, mesmo as grandes, têm pouco espaço para as constantes novidades e para os fundos (os livros publicados há mais tempo mas que, porque são long ou constant-sellers, as livrarias querem manter em loja).
Assim, se um livro não vendia/e muito bem logo nos primeiros dois meses, as livrarias passavam-no para a estante em vez do escaparate ou, na maior parte dos casos, devolviam-no ao editor para, em seguida, usarem o seu espaço para a próxima "tentativa de sucesso". Encaixem esta situação na anteriormente descrita do desaparecimento dos livreiros à moda antiga com verdadeira capacidade de analisar o fluxo de vendas em função do perfil de público e da ambição economicista das livrarias independentes da época...
O nosso mercado livreiro passou a ser igual: a maior parte das livrarias independentes vendia o mesmo que as grandes livrarias e grandes superfícies. Mas, como estas violavam e violam a lei e faziam descontos maiores, o público preferia-as e prefere-as.
Note-se também que se o público deixou de ser fiel e passou a ser ocasional, serviços como a encomenda de livros são muito trabalhosos e pouco rentáveis. Os livreiros à moda moderna, sem interesse e com pouca motivação (remunerativa), não vão estar a fazer encomenda de um livro só porque o não têm. É mais fácil dizer que "está esgotado".
Só que os livros não estão esgotados: estão nos armazéns dos editores que não os conseguem escoar. E quando estão num armazém e não se vendem, pagam impostos na mesma como bens activos (como se tivessem potencial de render o preço que têm).
- Quem é pouco prejudicado? As editoras que produzem livros "comerciais" de rotação rápida.
- Quem é mais prejudicado? As editoras que produzem livros que se vendem mais devagar: autores nacionais, clássicos, poesia, etc. Nessa fase fecharam várias editoras independentes que não conseguiram adequar-se ao mercado em mudança. Outras largaram livros de venda lenta para também tentarem fazer edição comercial.
O efeito global no mercado foi simples:
a) livreiros, editores, grandes superfícies vendiam menos porque a diversidade desaparecera/eu - a oferta era cansativa;
b) muitos leitores mais velhos reduziram as suas compras; os mais jovens começaram a ler noutras línguas;
c) os editores começaram a guilhotinar livros que não vendiam pois, ao menos assim, podiam recuperar pelo menos o dinheiro do imposto. Não era um prejuízo total...
Esse período viu o desaparecimento do espaço da crítica nos jornais e órgãos de imprensa (afinal com oferta de novidades tão descaracterizada também a crítica o era), e viu o surgimento de um mercado negro de venda de livros usados. Os livros passaram a circular entre pessoas que se usam da internet para, sem pagar impostos, venderem livros umas às outras sem que as editoras, livrarias e Autores vejam um cêntimo.
Tudo isto são frutos evidentes da perda de iniciativa e identidade dos agentes do mercado.
Há poucos meses, um artigo do Público, assinado por Luís Miguel Queirós, falava do aumento dos livros guilhotinados.
A Sr.ª Ministra da Cultura ouviu vários agentes do sector sobre este assunto. Falou-se da possibilidade de facilitar doações e de várias outras hipóteses para os fundos mortes das editoras. Eu próprio defendi a criação de uma central de compras/doações para as Bibliotecas e Bibliotecas Escolares. Falou-se da resolução de berbicachos na legislação fiscal referente a doações (esclareço: é uma figura não contemplada legalmente pelo que o editor, doando, tem de pagar imposto).
O que não sabíamos era que havia uma nova proposta de Lei do Preço Fixo a ser preparada.
Souberan a Associação do Sector, a APEL, e uma associação que representa parte do sector, a RELI (uma associação que nasceu de forma algo torta como discuti aqui), no dia 13 de Abril tendo como prazo para se pronunciarem, até dia 19 desse mesmo mês (5 dias úteis em pleno confinamento). Para a primeira, foi uma surpresa.
A proposta descreve de forma clara e evidente os motivos que levaram a esta revisão:
"Não obstante as alterações introduzidas em 2000 e em 2015, a experiência de aplicação, seis anos volvidos desde a última revisão, bem como o impacto da crise sanitária da pandemia da doença COVID-19 no mercado livreiro, determinam a necessidade de introduzir algumas alterações tendentes a melhorar o comércio do livro."
Esclarecido? Eu também não.
Pior: aquando da criação da lei original ou da sua revisão em 2015, a Lei do Preço Fixo do Livro foi sempre elaborada com acompanhamento e a instâncias da Associação que representa o sector. Desta feita tal não aonceteceu.
Se os prazos foram os que foram e ninguém foi consultado antes - que se tenha acusado - de onde vem a "experiência do sector"?
Esta proposta vem do vazio, ou não, porque correm rumores que a associação que representa uma pequena franja do sector, a RELI terá estado a trabalhar com algumas das instituições em causa - o que justificaria um artigo estranho na proposta de lei que parece limitar os descontos que os editores podem praticar na venda dos seus fundos sem, contudo, regular o desconto que os livreiros podem fazer nesses mesmos fundos - e as livrarias independentes são praticamente as únicas hoje em dia a vender fundos e o facto de quase todas as alterações serem prejudiciais aos editores e benéficas apenas para livrarias independentes. [Actualização em Fevereiro de 2022: Graças aos céus e ao bom senso, a Autoridade para Concorrência vetou esse artigo que devia ter saltado aos olhos das entidades como a DGLAB ou o próprio Ministério da Cultura.]
Enfim, o que me interessa aqui apontar é que:
a) esta proposta, a efectivar-se vai ser mais um passo no trajecto triste da perda da pouca identidade que o mercado ainda tinha.
b) que é uma falta de chá a maneira como foi preparada. É uma coisa mesquinha e prejudicial a todo um sector e feita contra a maior parte dos agentes do sector. (E mesmo aqueles que creio terem sido os efectivos proponentes vão perceber a médio trecho que a alteração lhes é nociva.)
c) vai levar a um garantido aumento no abate de livros e num encurtamento do tempo em que esse abate, tendo que acontecer, já acontecia. Afinal com a pandemia as livrarias estão a devolver mais rapidamente ainda as novidades que mal têm tempo para se afirmar (as devoluções de FNACs e Bertrands este ano já foram enormes). Os editores ficam com armazéns cheios de livros que não podem escoar com descontos apelativos e a necessidade de fazerem mais livros para compensar o insucesso daqueles outros (e para os quais não haverá espaço).
d) não há uma - UMA - justificação razoável para a alteração da lei, sobretudo no actual momento. Se alguma coisa se falava entre editores, Autores e alguns livreiros, era a redução do período de Preço Fixo.
e) vai destruir muitos pequenos editores e obrigar outros a deixarem de publicar obras "diferentes" para embarcarem por um caminho mais... carneirada.
f) não resolve nenhum dos problemas que a Lei do Preço Fixo tem e que teria evidente efeito de utilidade pública como a liberalização do desconto com que se podem vender livros às Bibliotecas das Redes Pública e Escolar ou regime de excepção para doações.
g) não corrige erros e inconsistências da lei (e mesmo gralhas de texto).
h) vai levar a que, como acontece em outros países culturalmente "pobres", os editores por interposta pessoa comecem a vender nos canais não controlados como eBays e OLXs e outros alternativos fugindo de um controle excessivo e castrador (e inútil) e evadindo-se aos impostos.
No pouco tempo que teve para analisar a proposta, a APEL fez uma contraproposta ainda mais absurda mas que era, na realidade, uma bofetada de luva branca aos reais proponentes da alteração à Lei do Preço Fixo: aceitar os 24 meses mas, depois, nunca liberalizar o preço dando apenas possibilidade de um desconto máximo de 30% (para sempre).
E para concluir:
- Na realidade, quem olhar historicamente para a Lei do Preço Fixo e para os seus efeitos no mercado, percebe que, na realidade, não precisamos dela.
- Se se for para a frente com a actual formulação proposta, serve apenas os interesses de uma franja reduzida do sector, as livrarias independentes, que, em boa parte (se bem que não na totalidade felizmente) por norma não paga nos tempos acordados aos editores, sobretudo aos pequenos.
- Se for para a frente com as propostas introduzidas pela APEL esteriliza o mercado tornando o livro provavelmente o produto mais controlado de todos sem qualquer espaço para qualquer tipo de iniciativa.
- Que isto tudo não é mais do que uma guerrinha ridícula para defender um grupo de interesses ínfimo no seio da Indústria Livreira e que é triste ver entidades governamentais (a proposta vem assinada pelo Primeiro-Ministro!) a brincar com coisas sérias.
- Que é mais evidente, agora do que nunca, que a Lei do Preço Fixo devia era ser abolida e substituída por uma regulamentação simples do desconto comercial. Essa sim garantiria todos os objectivos que fundamentam a criação da Lei do Preço Fixo e também que
a) não haveria desfasamento de preços nas ofertas seja de pequenos ou grandes livreiros ou de grandes superfícies.
b) haveria espaço para as livrarias voltarem, se quisessem, a desenvolver uma identidade.
c) o público leitor não era prejudicado.
d) os pequenos livreiros, os grandes ou as grandes superfícies não seriam prejudicados.
e) os editores, independentemente do seu tamanho, não seriam prejudicados.
f) o IGAC nem precisa de existir, ou, existindo, só tem de cruzar a informação com as Finanças relativamente às facturas emitidas para fazer o que tem a fazer sem necessidade de inspecções sequer.
g) acabavam muitas manhoseiras e estratagemas que todos os anos lesam o Estado na recolha de impostos.
h) com uma alteração legal obrigando à emissão de factura para produtos culturais poderíamos, sem mais, ter pela primeira vez em Portugal números reais quanto à venda e compra de livros, números que tanta falta fazem ao sector.
Balelas é ter medo de regrar o desconto comercial mas tentar controlar todo um sector com evidentes efeitos negativos.
- Enquanto uns quantos brincam com legislação, TODOS NÓS NO SECTOR vemos os hábitos de leitura descerem embora camuflados por sondagens e estatísticas surreais para União Europeia ver.
- Enquanto uns quantos brincam com legislação, não se desenvolvem campanhas e iniciativas nacionais com o objectivo de criar mais leitores regulares de livros.
Note-se, contudo, que não sou a favor de qualquer tipo de regramento no sector e sim de boa fiscalização. O regramento do sector apenas permite que empresas que nada acrescentam em termos de valor à oferta cultural e editorial se mantenham em actividade ocupando o espaço que novos projectos mais ambiciosos e clarividentes poderiam tomar como seus. Faço a sugestão acima apena para aqueles cujo medo vê necessidade de um sistema de equilíbrio artificial como única boia de salvação.
Da última vez em que instituições supostamente sérias se puseram a brincar com coisas de facto sérias (embora muito menos sérias do que agora) aconteceu isto.
Haveria muito mais a dizer mas para já ficou esta descarga de adrenalina de um editor frustrado com a mesquinhez de tudo isto.
Adenda
Pediram-me mais detalhes sobre as alterações propostas.
Podem consultar tudo aqui, mas verão que não há muito mais: alargamento do prazo da vigência do Preço Fixo para 24 meses; ligeira melhoria nalgumas definições (mas só naquelas onde incide a vigência dos 24 meses); cláusulas sobre os descontos acima referidas.
Pediram-me também mais informações sobre a tal possível influência da RELI. Não posso, obviamente, revelar a fonte em causa e, também para mim, não é mais do que um rumor pois quem me passou essa informação não tinha provas que me tenha apresentado. Mas que é, de todos os intervenientes ou possíveis interessados, a única "força" com interesse nas mudanças específicas que vão, aliás, bem ao encontro das medidas "de guerra" (a expressão sua) do manifesto de apresentação dessa associação... isso, como convirão, parece ser por demais evidente.