11/23/2012

Como vejo a função de editor de ficção



Não sendo editor de ficção, estive sempre no lugar de poder trabalhar com alguns (raros, em Portugal), de vê-los em ação e a discutirem a sua função. Ao longo dessas discussões, fiquei com a minha própria ideia do que é fazer editing a um texto ficcional.

Na edição de ficção, os pressupostos da receção são, para mim, essenciais para o bom editing de um livro. Tratando-se de ficção, a quase totalidade das vezes pode incluir-se num género (ex. terror, fantasia, ficção científica, romântico, policial, etc.), o que serve para identificar o texto e dar confiança ao leitor.

Sendo o livro um bem de experiência, não sabemos se iremos gostar de determinado livro antes de o lermos, e faremos as nossas escolhas de leitura na expectativa de que iremos encontrar no novo livro os pressupostos que o inseriram em determinado género (e nós, na categoria de leitores desse género), ou seja, num thriller iremos procurar tensão e ritmo, suspense e crime, velocidade de leitura e um final explosivo; em ficção científica, procuraremos um tema transversal e «universal» da humanidade tratado numa metáfora evasiva, tecnologias impressionantes, imaginação e criatividade adicional; num bildungsroman, procuraremos uma personagem credível e empática, ritmo lento e uma experiência identificável, por exemplo.

O que faz de nós leitores de um determinado género é o capital cultural (e social) acumulado, é o total das nossas experiências positivas e negativas (nomeadamente de leitura ou de usufruto de cultura), que nos molda e dá certezas de que determinado livro será apreciado por nós, pois é de um género/autor/tema que nos interessa.

Na escolha e na leitura, são assim essenciais as referenciações (pontos de reconhecimento) do género e é nesse campo que deve «operar» o editor.

Com isto não quero entrar no tema conturbado do que é ou não é literatura (pois a mesma pode existir ou não em todos os géneros ficcionais, como observamos nos policiais de Rubem Fonseca, ou na ficção científica de Ray Bradbury). Refiro-me apenas aos modelos utilizados pela escrita ficcional e que servem ao autor não só como veículo para a transmissão de algo que pretenda com o texto (reflexão, entretenimento, perceção de realidades, experiência sensorial, etc.), mas também de suporte para a construção deste veículo extenso (livro) necessário para alcançar os objetivos propostos.

O bom editor deverá ser, assim, quem percecione a sua função sob estas luzes, separando o suporte de escrita da verdadeira escrita (estilo próprio e ideias). Ele é tão-somente especialista em aperfeiçoar esse suporte e os seus elementos (ritmos, fidedignidade, inexatidões, erros de escrita, repetições, confusões, etc.) e não deverá imiscuir-se na escrita propriamente dita, alterando o estilo ou modificando (mesmo que, supostamente, para melhorar) as ideias existentes.

Perfeito será sempre o editor invisível, aquele que não altera aquilo que faz do autor o melhor especialista da sua obra, mas tem a capacidade de limpar o texto de todos os escolhos que só atrapalham a leitura.

Isso é o que eu penso, mas quem é de literatura sabe bem melhor do que eu e poderá, com certezas, discordar.

Nuno Seabra Lopes

9 comentários:

  1. Daí que, no mundo anglosaxónico exista uma especialização de editores por género.

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  2. Sim mas aí será necessário explicar ao público português como funciona a máquina editorial no mundo anglo-saxónico e mesmo já em vários outros. E, por exemplo, a diferença entre "editor" e "publisher". Deixo essa explicação para ti.

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  3. Sim, falei sempre de editing e não publishing, mas infelizmente a caixa de comentários e a barra de título não gostam muito dos itálicos.
    Ou seja, não é o editor à portuguesa, responsável pela escolha das obras e regras de edição, normalmente designado por nós como Coordenador ou Director Editorial (se bem que há, por vezes alguma natural sobreposição de funções num mercado pequeno como o nosso), quando não mesmo apenas o responsável pela empresa; falo do editor como o profissional especialista de texto, algo mais do que o revisor e não tanto um assistente editorial (quando de produção).
    Mas talvez tenhas razão e isto mereça um post isolado :-).

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  4. http://www.wisegeek.com/what-is-a-fiction-editor.htm

    Aqui explicam o que é um editor de ficção, mas a visão deles difere da minha. Este texto considera que o editor pode interferir no estilo e na escrita de forma mais extensa. Chega a dizer: « A writer may produce a technically perfect book that lacks a spark to compel readers, and the fiction editor will work with the writer to develop the book more fully.» o que é uma inversão completa.

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  5. Em Portugal não há editores que façam editing. E não, não é a Maria do Rosário Pedreira que o faz. Basta ler as entrevistas que deu e as dos autores que ela "editou" para percebermos que o seu editing é uma versão muito pequenina do editing americano. Por isso, saem livros cá para fora como Sandokan & Bakunine, um livro que precisava de um editing muito, muito pormenorizado e paciente para ter resultado minimamente bem.

    Infelizmente, Portugal é muito pequenino. E não sei se é por todos se conhecerem uns aos outros se é por sermos mesmo condescendentes, tudo é elogiado. A Maria do Rosário Pedreira é uma grande editora e o Bruno Margo um escritor originalíssimo. E assim vai a nossa literatura e o nosso editing. Na mesma, como a lesma.

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  6. De facto não me referia à Rosário Pedreira, que nas diversas entrevistas afirma intervir pouco nas obras que edita. Intervém mais em termos de discussão com os autores, levando-os a serem eles a alterar os textos, em vez de intervir diretamente.
    É, ainda assim, um processo de editing, e faz com que os autores aprendam bastante.
    Mas, Gonçalo, existem alguns profissionais que, de facto, editam texto (não tanto ou quase nada em ficção), tanto para o mercado editorial, como para outros mercados, como o académico.

    Nas gerações mais antigas ainda pesa a tradição francesa de sacralidade do autor (associado à falta de competências especializadas para proceder a essas alterações com justificação), mas entre os mais novos (e alguns mais velhos) existe há muito tempo a tendência para editar textos à americana.
    E alguns dos principais revisores são chamados por vezes a rever intensivamente, propondo ou alterando inúmeras vezes os originais. Por vezes até criando texto adicional que falta ao original.

    Mas tens razão em relação à falta de editing em Portugal. Nesse caso não posso falar, pois não li ainda o livro, mas recordo-me, por exemplo, no Rosto do Jaguar (1.º Prémio LeYa), que é um livro muito bom que, com um editing intensivo, ficaria extraordinário.

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  9. Eu sei de vários escritores de certa relevância na nossa praça que são alvo de tremendo editing.

    E sim, é a nossa herança francesa que ainda nos leva a carregar os editores e os autores com determinados atributos e a ter muito medo de "mexer com a alta literatura".

    Pessoalmente nem tanto ao lado anglo-saxónico nem tanto ao lado francês.

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