3/29/2016

António Abreu - Por Flamarion Maués

Criador de editoras em Portugal e no Brasil,
morreu o editor António Abreu

Por Flamarion Maués, de São Paulo

Faleceu hoje, 20 de março de 2016, em São Paulo, o editor português António Daniel Abreu, criador das editoras Cadernos Para o Diálogo (1971), Textos Marginais (1972), Rés (1975) e Nova Crítica (1975), todas sediadas na cidade do Porto. Em 1986 ele mudou-se para São Paulo, onde vivia desde então, também exercendo a profissão de editor, à frente da editora Landy.

A notícia foi dada por sua companheira, Linda de Lima, pelo Facebook.

Conheci e entrevistei Abreu em 2012, quando escrevia minha tese de doutorado sobre as editoras políticas portuguesas do período do marcelismo e do 25 de Abril, já que suas duas primeiras editoras tiveram destacado papel na oposição à ditadura portuguesa.

É uma perda lamentável, sem dúvida. Abreu foi uma pessoa que dedicou sua vida à edição e aos livros, merece todo o nosso respeito.

A título de homenagem, reproduzo abaixo os trechos do meu trabalho que tratam das editoras Cadernos Para o Diálogo e Textos Marginais.

Para que quiser ver a tese na íntegra, ela está disponível na internet: SILVA, Flamarion Maués Pelúcio Silva. Livros que tomam partido: a edição política em Portugal, 1968-80. Tese de doutorado em História, Universidade de São Paulo, 2013. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07112013-131459/en.php>.

Duas editoras contra a ditadura
Flamarion Maués


Cadernos Para o Diálogo
Porto
Editor: António Daniel Abreu.
Início das edições: 1971.
Distribuição: Livraria Paisagem.

   




Editora criada em 1971 por António Daniel Abreu na cidade do Porto. Sua origem relaciona-se à atividade profissional de Abreu na Editora Paisagem (ver item sobre esta editora no Capítulo 11), onde ele trabalhava no setor de vendas.

Abreu tinha ligações com setores católicos progressistas, que faziam oposição à ditadura, e tinha feito parte da Juventude Operária Católica (JOC) e do Gedoc (Grupo de Estudos e Intercâmbio de Documentos, Informações, Experiências). O nome da editora foi inspirado na revista espanhola Cuadernos para el Diálogo[1], que circulou entre 1963 e 1978 e vinculava-se inicialmente ao pensamento democrata-cristão, “evoluindo para posições próximas à centro-esquerda, para terminar, em sua última fase, com um jornalismo de corte socialista”[2]. O mesmo grupo que editava a revista criou na Espanha, em 1965, uma editora com o mesmo nome[3].

Depois que saiu da Paisagem, no começo da década de 1970, Abreu foi trabalhar na editora Inova, de José Cruz Santos, também no Porto. Lá ficou pouco tempo, pois decidiu começar a editar por conta própria. “Comecei a editar em 1971. Eu tinha 19 anos, então a minha mãe teve que me dar a emancipação, pois eu era menor de 21 anos”, conta Abreu[4], que desde 1986 vive no Brasil.

“O Abreu, do seu trabalho de vendas, percebeu que havia espaço para fazer publicações de orientação oposta ao regime, que condiziam com os sentimentos dele de opositor da ditadura, e começou a fazê-las, com todo o atrevimento e ingenuidade”, lembra João Barrote[5], que trabalhou com Abreu na Editora Paisagem e depois colaborou com ele na editora Textos Marginais.

A primeira editora criada por António Daniel Abreu foi a Cadernos Para o Diálogo, que editou seis títulos em 1971. Entre os autores estavam Marx (Trabalho assalariado e capital), Engels (A questão do alojamento), D. Helder Câmara (Espiral de violência) e Aime Césaire (Discurso sobre o colonialismo). Este último livro, em particular, “era uma afronta para o regime, porque a palavra colonialismo tinha sido banida em Portugal”, lembra Abreu. Os outros dois títulos publicados foram O império Rockefeller e Comuna de Paris 1871, de Prosper Ollivier Lissagaray.

Tais lançamentos não passaram despercebidos pela polícia política. Abreu recorda que:

A Cadernos Para o Diálogo publicou livros, digamos, muito avançados, a polícia política, a PIDE/DGS, veio em cima de mim, apreendeu tudo, fizeram um processo, e eu tive que parar com aquilo porque não tinha mais condições. Qualquer livro que saísse eles vinham em cima de mim.

Um bom exemplo dessa perseguição foi a censura ao livro Discurso sobre o colonialismo, de Aime Césaire. O texto foi retirado da revista francesa Présence africaine, trazida clandestinamente para Portugal por membros do PCP. O livro começou a ser distribuído no dia 6 de dezembro de 1971 e dois dias depois já era de conhecimento da PIDE/DGS[6]. Abreu diz que “neste caso foram informadores infiltrados na gráfica que terão entregue uma cópia do livro directamente às autoridades quando este estava pronto para ser distribuído”[7].

O relatório da DGS sobre o livro é curto e direto: “O autor é negro, comunista e foi em tempos deputado francês. Trata-se duma diatribe contra a civilização ocidental, numa pseudo defesa das civilizações negra, oriental e índia. Para proibir”[8].

Para tentar escapar à perseguição e ao estigma que a Cadernos Para o Diálogo tinha criado junto à PIDE, Abreu resolveu encerrá-la e iniciar uma outra editora. “Foi quando eu comecei a Textos Marginais, com uma proposta diferente, mais aberta”, diz Abreu.

Assim, a existência da Cadernos Para o Diálogo foi curta, cerca de um ano apenas, com seis títulos publicados, todos com padrão gráfico e editorial profissional e distribuídos pela Livraria Paisagem. A editora foi vítima das perseguições policiais e da censura da época, que acabaram por inviabilizar a sua continuidade. Dito de outra forma, a editora “[...] desapareceu somente por motivos coercitivos”[9].

Abreu criou mais três editoras em Portugal – Textos Marginais, Rés e Nova Crítica –, sempre no Porto. Em 1986 mudou-se para São Paulo, onde vive desde então, também exercendo a profissão de editor, à frente da editora Landy. 


Textos Marginais
Porto
Editor: António Daniel Abreu.
Início das edições: 1972.
Distribuidor: Dinalivros / Brasil: Martins Fontes.

 





Editora criada por António Daniel Abreu na cidade do Porto, em 1972, para dar continuidade à sua atividade de editor. Abreu havia criado no ano anterior a editora Cadernos Para o Diálogo, que havia tido muitos problemas com a polícia política e a censura, devido aos títulos publicados.

A criação da Textos Marginais foi a forma encontrada por Abreu para tentar escapar a esta perseguição, já que qualquer título que viesse a ser publicado pela Cadernos Para o Diálogo estava fadado à censura e à apreensão. O nome da nova editora parece ter sido inspirado pela coleção Cuadernos Marginales, da Editorial Tusquets, de Barcelona, criada em 1969[10].

Os livros editados pela Textos Marginais se caracterizavam pelo marcado caráter político e ideológico ligado ao pensamento transformador, de esquerda e marxista, mas não tocavam diretamente na questão colonial, que, na opinião de Abreu, era o ponto que mais incomodava o regime. Diz ele:

Antes do 25 de Abril havia uma “liberdade vigiada” pela polícia política. Os livros eram isentos de censura [prévia], mas eram apreendidos quando ultrapassavam as barreiras da “legalidade” imposta. Havia algumas coisas que eles não permitiam de jeito nenhum. Em relação aos clássicos, Marx, Engels, a perseguição não era tão grande, mas as coisas ligadas aos movimentos coloniais eles não perdoavam de jeito nenhum.[11]

Antes do 25 de Abril a Textos Marginais publicou livros como: O sistema irracional, de Paul Baran e Paul Sweezy (1972); A guerra civil de Espanha, de Andrés Nin (1972); Contribuição para a história do cristianismo primitivo, de Karl Marx e Friedrich Engels (1972); Os cristãos e a libertação dos povos, de Yves Jolif e outros (1972); Uma educação para a liberdade, de Paulo Freire (1972); Discurso sobre as artes e as ciências, de Jean-Jacques Rousseau (1972); O novo mundo industrial e societário e outros textos, de Charles Fourier (1973); e Império e imperialismo americano, Celso Furtado e outros (1973).

António Abreu recorda que:
Os livros da Textos Marginais eram um sucesso. Quando fiz o primeiro eu tinha um certo receio, porque a polícia vinha sempre em cima de mim, então eu comecei com 1.500 exemplares, que já saíam praticamente vendidos. Aí eu fui aumentando a tiragem até que chegou a 10 mil a tiragem inicial. E vendia tudo.

A partir do quinto ou do sexto livro editado, Abreu passou a contar com a assessoria de João Barrote, com quem havia trabalhado na Editora Paisagem, e que em 1973 criou as Publicações Escorpião/Textos Exemplares. Barrote fazia a supervisão das traduções e também indicava textos para edição. “Mas a grande maioria era eu mesmo que selecionava”, afirma Abreu.

Os recursos investidos na editora eram de Abreu. “Na verdade o investimento era quase nulo, porque os livros já saíam quase todos vendidos”, diz ele.

Um dos maiores sucessos da editora foi o livro O combate sexual da juventude, de Wilhelm Reich, publicado em 1972, que vendeu quase 30 mil exemplares. “Quando eu resolvi editar este livro todo mundo disse que eu estava louco, que eu seria preso, mas resolvi editar assim mesmo. Foi um sucesso, vendeu uns 20 mil, 30 mil exemplares. Eu tirei os primeiros 5 mil e vendeu tudo em 24 horas”, lembra Abreu.

“Com a Textos Marginais os problemas com a censura e a PIDE/DGS foram poucos”, diz. Ele lembra que teve problemas em 1972, quando uma nova Lei de Imprensa reforçou a exigência de registro na Secretaria de Estado da Comunicação Social para se poder editar. “Como eu não estava inscrito lá, eles fizeram um processo por conta do livro A medicina e a vida hospitalar na República Popular da China. Aí fiquei praticamente proibido de editar, meu nome não podia aparecer nos livros”.

Em 1973 Abreu estava em idade militar e foi enviado para Angola, onde ficou 21 meses. “Com o meu histórico com a PIDE, fui pra lá com uma espécie de ‘estatuto de revolucionário’, que eu nunca tive de fato”, lembra. Mas mesmo na África Abreu conseguiu dar continuidade às edições, inclusive realizando algumas revisões de textos que lhe eram enviados por correio.

Quando deu-se o 25 de Abril, Abreu estava em Angola, mas pouco tempo depois já havia retornado a Lisboa .

Depois do 25 de Abril os livros continuaram vendendo bem, conta Abreu. Um indicador desses bons resultados é o fato de três títulos da editora terem aparecido na secção “Os best-seller da quinzena” do jornal Expresso, em 1974 e 1975. O livro O combate sexual da juventude, de W. Reich, apareceu em 5º lugar (24/5/1975), em 3º (7/6/1975) e em 9º (21/6/1975). Já a obra de Paulo Freire, Uma educação para a liberdade, foi mencionada em 10º lugar em 25/1/1975. E A nossa arma é a greve, reunião de textos de Franz Mehring, Rosa Luxemburgo e Emile Vandervelde, surgiu em 7º lugar em 21/6/1975[12].

Outros títulos editados a partir de 1974 foram: Uma iniciação à economia, de Charles Rouge (1974); Teoria e história do capitalismo monopolista, de Harry Magdoff, Paul Baran e Paul Sweezy (1974); A aplicação da psicanálise à investigação histórica, de Wilhelm Reich (1974); Progresso social e liberdade, de Herbert Marcuse (1974); Viver em Moscovo, viver em Nova York, de K. S. Karol e Herman Schreiber (1975); Inquérito operário e luta política, com textos de K. Marx e Mao Tsé-tung (1975); Socialismo, casamento e família: a doutrina socialista do casamento, de David Riazanov (1975); e As três fontes do marxismo: a obra histórica de Karl Marx, de Karl Kautsky (1975).

Mas os novos tempos trouxeram mudanças para o setor editorial:
As coisas mudaram radicalmente. Antes do 25 de Abril o livro saía com o rótulo de proibido, então havia todo um mercado paralelo, que se formou em função disso, as livrarias recebiam os livros que sabiam que seriam proibidos e já tinham uma forma de os vender, recebiam os livros e nem expunham, ficavam debaixo do balcão e havia os clientes certos que iam lá e compravam. Eram tiragens de 3 mil, 4 mil exemplares e vendia tudo. Normalmente uns 30% ou 40% da tiragem eram já destinados para a apreensão, a gente já contava com aquilo. Com o 25 de Abril surgiram dezenas de editoras, e naturalmente eu também perdi espaço, eu tive que me afastar de algumas coisas e mudar o rumo.

Abreu lembra, com ironia, que “Com o 25 de Abril todos se transformaram em revolucionários, até alguns que eram ligados ao antigo regime foram parar no Partido Comunista”. Mas, depois de cerca de dois anos em que a agitação política foi intensa e vendeu-se livros políticos como nunca em Portugal – de abril de 1974 até o final de 1975 –, o mercado para este tipo de livro começou a diminuir. “Depois, já em 1976-78, começou a haver uma definição de mercado, porque o mercado era muito bagunçado. O mercado começou a ser muito mais seletivo, ficaram alguns, a Afrontamento, a Centelha, o resto caiu tudo”, diz Abreu, que completa: “O interesse pelo livro político caiu muito. O interesse era motivado, em grande parte, pela repressão política”.

Já em 1975 Abreu partiu para uma nova empreitada, criando a editora Rés em sociedade com Reinaldo Carvalho (ver item sobre esta editora no Capítulo 11).

António Abreu avalia da seguinte forma a atuação das editoras políticas em Portugal no período que precede ao 25 de Abril e nos anos imediatamente seguintes ao fim da ditadura:

Acho que as editoras que publicaram livros políticos tiveram um papel importante na formação política, porque não existia formação política em Portugal devido ao longo período da ditadura. A maioria dessas pequenas editoras era ligada a algum movimento. Elas não tinham uma visão comercial, eram idealistas que faziam aqueles livros.

Todos os títulos editados pela Textos Marginais eram de autores estrangeiros, com exceção de uma única obra: Miséria de cinema, de António Faria, publicado em maio de 1974. Os livros tinham tratamento editorial e gráfico profissional, e a distribuição era feita pela Dinalivro.

A editora atuou até 1977, tendo publicado 28 títulos. O período de maior atuação foi entre 1972 e 1974, quando saíram 21 títulos. Em 1975 foram editados apenas quatro, em 1976 apenas um, e 1977 dois títulos. Os três últimos títulos já saíram em edições feitas pela Dinalivro, a quem Abreu havia vendido a Textos Marginais em fins de 1975.

Em alguns livros da Textos Marginais aparece o seguinte crédito: “Edição: Henrique A. Carneiro”.  Como esclareceram-me António Abreu, José de Sousa Ribeiro[13], da editora Afrontamento, e João Barrote[14], este senhor era um dos proprietários da Gráfica Firmeza, do Porto, onde foram impressos muitos livros de caráter político naqueles anos. O seu nome aparecia para cumprir a exigência legal de que houvesse um editor autorizado que fosse responsável pela publicação – e também para proteger os reais editores de possíveis problemas com a polícia política. Mas de fato o senhor Henrique A. Carneiro não era o editor daquelas obras, mas sim o tipógrafo responsável por sua impressão. A menção de seu nome como responsável pela edição ocorre em livros de muitas outras editoras do Porto (ver item sobre a Editora Textos Políticos, neste capítulo).

(Extraído de: SILVA, Flamarion Maués Pelúcio Silva. Livros que tomam partido: a edição política em Portugal, 1968-80. Tese de doutorado em História, Universidade de São Paulo, 2013. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07112013-131459/en.php>.)




[1] Conforme lembrou João Barrote em mensagem eletrônica enviada em 28/6/2011.
[2] DAVARA TORREGA, Francisco Javier. “La aventura informativa de Cuadernos para el diálogo”. Estudios sobre el Mensaje Periodístico, nº  201, 2004, p. 201-220. Disponível em: <http://revistas.ucm.es/index.php/ESMP/article/view/ESMP0404110201A/12595>. Acesso em 26/10/2012.
[3] MORET, Tiempo de editores, op. cit., p. 296.
[4] Entrevista com António Daniel Abreu, São Paulo, 23/8/2012. Todas as demais falas de Abreu provêm desta entrevista.
[5] Entrevista com João Barrote, freguesia de Arnoia, concelho de Celorico de Bastos, distrito de Braga, 22/6/2011.
[6] CÉSAR, Felipa. “Notas sobre o fac-símile da publicação Cadernos para o Diálogo 2”. In: CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Edição fac-similar. Berlin: Bom Dia, 2012.
[7] Ibidem.
[8] Relatório 9253 da DGS sobre o livro Discurso sobre o colonialismo, datado de 11 de janeiro de 1972, assinado por Simão Gonçalves. Reproduzido em CÉSAR, op. cit.
[9] Tal afirmação aparece na contracapa do livro O que é uma constituição política?, de Ferdinand Lassalle, que em 1976 inaugurou a nova série da coleção Cadernos Para o Diálogo, recriada por Abreu na editora Nova Crítica (ver item sobre esta editora no Capítulo 11).
[10] Conforme lembrou João Barrote em mensagem eletrônica enviada em 28/6/2011.
[11] Entrevista com António Daniel Abreu, São Paulo, 23/8/2012. Todas as demais declarações de Abreu provêm desta entrevista.
[12] “Os best-seller da quinzena”. Secção do jornal Expresso, 1974 e 1975. Hemeroteca Municipal de Lisboa.
[13] Entrevista com José de Sousa Ribeiro, Porto, 24/3/2011.
[14] Entrevista com João Barrote, Arnoia, 22/6/2011.

3/22/2016

Festivalar

Coincide o facto de pela primeira vez eu ter sido convidado para um festival literário - fujo geralmente de eventos com muita gente -, com o aparecimento de um excelente texto da Joana Emídio Marques sobre a fenomenologia dos Festivais Literários num país em que pouco se lê, tudo isto um dia depois do Encontro Livreiro que decorreu, mais uma vez na histórica Culsete em Setúbal.

Quando eu voltar do Festival Literário da Madeira darei a minha opinião com conhecimento de causa.