3/18/2024

 50 Anos no Mundo do Livro: Da Gestão à Investigação


Projecto iniciado em 2021, desenvolvido no âmbito do plano de actividades da unidade de I&D Centro de Línguas Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro, publicado por Âncora Editora com prefácio de José Soares Neves e posfácio de David Callahan.

Apresentado em 14 de Março de 2024, na Sala de Âmbito Cultural do El Corte Inglés, por Paula Morão, Professora Catedrática Emérita da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e ex-Directora-Geral do Livro e das Bibliotecas.

Estruturado em estilo de narrativa biográfica e compilação documental, 50 Anos no Mundo do Livro não é uma autobiografia, não é um livro de memórias, não constitui o relato de uma história de vida. Trata-se de um testemunho escrito, desenvolvido com o objectivo de divulgar e preservar para memória futura factos, princípios e realidades que estão presentes na minha vivência e no acompanhamento da relação virtuosa entre a palavra escrita e a prática de princípios de gestão socialmente responsável no contexto da indústria cultural do livro, uma associação de valores relevante para o desenvolvimento sociocultural.

O evento constituiu, igualmente, uma oportunidade de dar contributo para a memória colectiva da luta e importância da actividade editorial e livreira pela conquista e consolidação da liberdade democrática em Portugal


4/26/2021

Do absurdo

Cut or rip out half of the pages. Lay the book flat with the cut side away from you.

Deixem-me contar-vos uma história:

Há muitos anos, o maior grupo de livrarias nacional foi comprado por uma editora estrangeira. Na mesma altura surgiam por todo o país as ditas grandes superfícies (hipermercados). Em pânico, os pequenos livreiros pediram ajuda ao Estado. Já estavam a ser esmagados pelas grandes superfícies (aparecidas há poucos anos) que davam descontos enormes aos compradores e compravam livros em grandes quantidades aos editores que assim escoavam os seus fundos rapidamente.

Implementou-se uma «Lei do Preço fixo do Livro» (1996) copiada de uma lei francesa. Essa legislação tinha por objectivo (declarado) proteger os pequenos livreiros, editores e o cliente final - diziam. Nunca o fez. 

As grandes cadeiras de livrarias e as grandes superfícies violam regularmente essa lei e as multas são ínfimas convidando à prevaricação.

O efeito concreto que teve foi a des-liberalização do mercado que resultou no encerramento de centenas de livrarias e com que vários pontos de venda de livros, como papelarias-livrarias e quiosques, abandonassem o livro como produto. Porquê? perguntais-me vós... 

É simples: 

a) o pequeno livreiro deixou de poder negociar com a editora as suas apostas. Afinal de que serve negociar se o desconto final é igual para todos? 

(Não se esqueçam que há um desconto comercial que não é regrado legalmente: o desconto que o editor faz ao livreiro. Uma livraria independente exige descontos a rondar os 35 a 40% sobre o preço de capa do livro e as grandes cadeias e superfícies pedem descontos que podem ir até aos 60 e tal %.)

b) as livrarias independentes que tinham bons livreiros (aqueles à moda antiga) viram-se em igualdade de circunstância (aparentemente apenas, porque o desconto comercial era diferente) com as grandes cadeias e as grandes superfícies. Assim, em vez de usarem a experiência dos seus livreiros (à moda antiga) que encomendavam os livros de acordo com o perfil da livraria e do seu público, começaram a encomendar tudo. E se encomendavam tudo para conseguirem chegar a todo o público, para que é que precisavam de um livreiro experiente e conhecedor (e com ordenado inerentemente mais alto)? Estes foram reformados ou despedidos, substituídos por miúdos que não liam nem sabiam nada de livros mas que aceitavam trabalhar por tuta e meia.

O resultado - e é pena que não haja dados para termos números concretos - foi o encerramento de dezenas de livrarias independentes nos 7 anos seguintes à implementação da Lei. E de o livro ter desaparecido como produto habitual de papelarias-livrarias e de quiosques.

Quem tudo quer, tudo perde: o público fiel das livrarias deixou de o ser porque as livrarias se generalizaram e, como tal, de descaracterizaram; o público generalista prefere ir às grandes cadeias ou às grandes superfícies pois, obviamente, na maré de novidades, estas têm mais espaço e quantidades. 

As livrarias independentes tentaram meter o Rossio na Betesga sem sucesso. Não tinham espaço e, mesmo quando este até suportava as novidades quase todas, não conseguiam ter muitos exemplares de um livro e, sem livreiros experientes, que soubessem analisar o interesse do público local, este, muitas vezes, pedia um livro cujos 1 ou 2 exemplares tinham já sido vendidos perdendo-se a oportunidade de venda.

E assim foi, de lá para cá. Violações sucessivas da lei pelos "grandes" e livrarias independentes a fechar pois perderam identidade.

A entidade responsável pela aplicação da lei (o IGAC) nunca teve meios para exercer um controlo efectivo. Faz inspecções de tempos a tempos e multa com valores ridículos os prevaricadores que nem sequer se sentem obrigados a "retirar" a campanha.

Mas os efeitos nefandos continuam: o livro passou a manter-se com preço fixado por 18 meses. Na maior parte dos países que tinham adoptado a medida, esse prazo era muito inferior. Qual é então o problema de 18 meses de duração do período de preço fixo? 

Vejamos: estamos num mercado voltado para a novidade, onde a rotação rápida do produto é evidente. Publicam-se muitos livros e as livrarias, mesmo as grandes, têm pouco espaço para as constantes novidades e para os fundos (os livros publicados há mais tempo mas que, porque são long ou constant-sellers, as livrarias querem manter em loja).

Assim, se um livro não vendia/e muito bem logo nos primeiros dois meses, as livrarias passavam-no para a estante em vez do escaparate ou, na maior parte dos casos, devolviam-no ao editor para, em seguida, usarem o seu espaço para a próxima "tentativa de sucesso". Encaixem esta situação na anteriormente descrita do desaparecimento dos livreiros à moda antiga com verdadeira capacidade de analisar o fluxo de vendas em função do perfil de público e da ambição economicista das livrarias independentes da época...

O nosso mercado livreiro passou a ser igual: a maior parte das livrarias independentes vendia o mesmo que as grandes livrarias e grandes superfícies. Mas, como estas violavam e violam a lei e faziam descontos maiores, o público preferia-as e prefere-as.

Note-se também que se o público deixou de ser fiel e passou a ser ocasional, serviços como a encomenda de livros são muito trabalhosos e pouco rentáveis. Os livreiros à moda moderna, sem interesse e com pouca motivação (remunerativa), não vão estar a fazer encomenda de um livro só porque o não têm. É mais fácil dizer que "está esgotado".

Só que os livros não estão esgotados: estão nos armazéns dos editores que não os conseguem escoar. E quando estão num armazém e não se vendem, pagam impostos na mesma como bens activos (como se tivessem potencial de render o preço que têm). 

 - Quem é pouco prejudicado? As editoras que produzem livros "comerciais" de rotação rápida. 

- Quem é mais prejudicado? As editoras que produzem livros que se vendem mais devagar: autores nacionais, clássicos, poesia, etc. Nessa fase fecharam várias editoras independentes que não conseguiram adequar-se ao mercado em mudança. Outras largaram livros de venda lenta para também tentarem fazer edição comercial.

O efeito global no mercado foi simples:

a) livreiros, editores, grandes superfícies vendiam menos porque a diversidade desaparecera/eu - a oferta era cansativa;

b) muitos leitores mais velhos reduziram as suas compras; os mais jovens começaram a ler noutras línguas;

c) os editores começaram a guilhotinar livros que não vendiam pois, ao menos assim, podiam recuperar pelo menos o dinheiro do imposto. Não era um prejuízo total...

Esse período viu o desaparecimento do espaço da crítica nos jornais e órgãos de imprensa (afinal com oferta de novidades tão descaracterizada também a crítica o era), e viu o surgimento de um mercado negro de venda de livros usados. Os livros passaram a circular entre pessoas que se usam da internet para, sem pagar impostos, venderem livros umas às outras sem que as editoras, livrarias e Autores vejam um cêntimo.

Tudo isto são frutos evidentes da perda de iniciativa e identidade dos agentes do mercado.

Há poucos meses, um artigo do Público, assinado por Luís Miguel Queirós, falava do aumento dos livros guilhotinados. 

A Sr.ª Ministra da Cultura ouviu vários agentes do sector sobre este assunto. Falou-se da possibilidade de facilitar doações e de várias outras hipóteses para os fundos mortes das editoras. Eu próprio defendi a criação de uma central de compras/doações para as Bibliotecas e Bibliotecas Escolares. Falou-se da resolução de berbicachos na legislação fiscal referente a doações (esclareço: é uma figura não contemplada legalmente pelo que o editor, doando, tem de pagar imposto).

O que não sabíamos era que havia uma nova proposta de Lei do Preço Fixo a ser preparada.

Souberan a Associação do Sector, a APEL, e uma associação que representa parte do sector, a RELI (uma associação que nasceu de forma algo torta como discuti aqui), no dia 13 de Abril tendo como prazo para se pronunciarem, até dia 19 desse mesmo mês (5 dias úteis em pleno confinamento). Para a primeira, foi uma surpresa.

A proposta descreve de forma clara e evidente os motivos que levaram a esta revisão:

"Não obstante as alterações introduzidas em 2000 e em 2015, a experiência de aplicação, seis anos volvidos desde a última revisão, bem como o impacto da crise sanitária da pandemia da doença COVID-19  no  mercado  livreiro, determinam a necessidade de introduzir algumas alterações tendentes a melhorar o comércio do livro."

Esclarecido? Eu também não. 

Pior: aquando da criação da lei original ou da sua revisão em 2015, a Lei do Preço Fixo do Livro foi sempre elaborada com acompanhamento e a instâncias da Associação que representa o sector. Desta feita tal não aonceteceu.

Se os prazos foram os que foram e ninguém foi consultado antes - que se tenha acusado - de onde vem a "experiência do sector"?

Esta proposta vem do vazio, ou não, porque correm rumores que a associação que representa uma pequena franja do sector, a RELI terá estado a trabalhar com algumas das instituições em causa - o que justificaria um artigo estranho na proposta de lei que parece limitar os descontos que os editores podem praticar na venda dos seus fundos sem, contudo, regular o desconto que os livreiros podem fazer nesses mesmos fundos - e as livrarias independentes são praticamente as únicas hoje em dia a vender fundos e o facto de quase todas as alterações serem prejudiciais aos editores e benéficas apenas para livrarias independentes. [Actualização em Fevereiro de 2022: Graças aos céus e ao bom senso, a Autoridade para Concorrência vetou esse artigo que devia ter saltado aos olhos das entidades como a DGLAB ou o próprio Ministério da Cultura.]

Enfim, o que me interessa aqui apontar é que:

a) esta proposta, a efectivar-se vai ser mais um passo no trajecto triste da perda da pouca identidade que o mercado ainda tinha.

b) que é uma falta de chá a maneira como foi preparada. É uma coisa mesquinha e prejudicial a todo um sector e feita contra a maior parte dos agentes do sector. (E mesmo aqueles que creio terem sido os efectivos proponentes vão perceber a médio trecho que a alteração lhes é nociva.)

c) vai levar a um garantido aumento no abate de livros e num encurtamento do tempo em que esse abate, tendo que acontecer, já acontecia. Afinal com a pandemia as livrarias estão a devolver mais rapidamente ainda as novidades que mal têm tempo para se afirmar (as devoluções de FNACs e Bertrands este ano já foram enormes). Os editores ficam com armazéns cheios de livros que não podem escoar com descontos apelativos e a necessidade de fazerem mais livros para compensar o insucesso daqueles outros (e para os quais não haverá espaço).

d) não há uma - UMA - justificação razoável para a alteração da lei, sobretudo no actual momento. Se alguma coisa se falava entre editores, Autores e alguns livreiros, era a redução do período de Preço Fixo.

e) vai destruir muitos pequenos editores e obrigar outros a deixarem de publicar obras "diferentes" para embarcarem por um caminho mais... carneirada.

f) não resolve nenhum dos problemas que a Lei do Preço Fixo tem e que teria evidente efeito de utilidade pública como a liberalização do desconto com que se podem vender livros às Bibliotecas das Redes Pública e Escolar ou regime de excepção para doações.

g) não corrige erros e inconsistências da lei (e mesmo gralhas de texto).

h) vai levar a que, como acontece em outros países culturalmente "pobres", os editores por interposta pessoa comecem a vender nos canais não controlados como eBays e OLXs e outros alternativos fugindo de um controle excessivo e castrador (e inútil) e evadindo-se aos impostos.

No pouco tempo que teve para analisar a proposta, a APEL fez uma contraproposta ainda mais absurda mas que era, na realidade, uma bofetada de luva branca aos reais proponentes da alteração à Lei do Preço Fixo: aceitar os 24 meses mas, depois, nunca liberalizar o preço dando apenas possibilidade de um desconto máximo de 30% (para sempre).

E para concluir:

- Na realidade, quem olhar historicamente para a Lei do Preço Fixo e para os seus efeitos no mercado, percebe que, na realidade, não precisamos dela.

- Se se for para a frente com a actual formulação proposta, serve apenas os interesses de uma franja reduzida do sector, as livrarias independentes, que, em boa parte (se bem que não na totalidade felizmente) por norma não paga nos tempos acordados aos editores, sobretudo aos pequenos.

- Se for para a frente com as propostas introduzidas pela APEL esteriliza o mercado tornando o livro provavelmente o produto mais controlado de todos sem qualquer espaço para qualquer tipo de iniciativa.

- Que isto tudo não é mais do que uma guerrinha ridícula para defender um grupo de interesses ínfimo no seio da Indústria Livreira e que é triste ver entidades governamentais (a proposta vem assinada pelo Primeiro-Ministro!) a brincar com coisas sérias.

- Que é mais evidente, agora do que nunca, que a Lei do Preço Fixo devia era ser abolida e substituída por uma regulamentação simples do desconto comercial. Essa sim garantiria todos os objectivos que fundamentam a criação da Lei do Preço Fixo e também que

    a) não haveria desfasamento de preços nas ofertas seja de pequenos ou grandes livreiros ou de                grandes superfícies.            

    b) haveria espaço para as livrarias voltarem, se quisessem, a desenvolver uma identidade.

    c) o público leitor não era prejudicado.

    d) os pequenos livreiros, os grandes ou as grandes superfícies não seriam prejudicados.

    e) os editores, independentemente do seu tamanho, não seriam prejudicados.

    f) o IGAC nem precisa de existir, ou, existindo, só tem de cruzar a informação com as Finanças                 relativamente às facturas emitidas para fazer o que tem a fazer sem necessidade de inspecções sequer.

    g) acabavam muitas manhoseiras e estratagemas que todos os anos lesam o Estado na recolha de             impostos. 

    h) com uma alteração legal obrigando à emissão de factura  para produtos culturais poderíamos, sem     mais, ter pela primeira vez em Portugal números reais quanto à venda e compra de livros, números        que tanta falta fazem ao sector.

Balelas é ter medo de regrar o desconto comercial mas tentar controlar todo um sector com evidentes efeitos negativos.

- Enquanto uns quantos brincam com legislação, TODOS NÓS NO SECTOR vemos os hábitos de leitura descerem embora camuflados por sondagens e estatísticas surreais para União Europeia ver.

- Enquanto uns quantos brincam com legislação, não se desenvolvem campanhas e iniciativas nacionais com o objectivo de criar mais leitores regulares de livros.

Note-se, contudo, que não sou a favor de qualquer tipo de regramento no sector e sim de boa fiscalização. O regramento do sector apenas permite que empresas que nada acrescentam em termos de valor à oferta cultural e editorial se mantenham em actividade ocupando o espaço que novos projectos mais ambiciosos e clarividentes poderiam tomar como seus. Faço a sugestão acima apena para aqueles cujo medo vê necessidade de um sistema de equilíbrio artificial como única boia de salvação.

Da última vez em que instituições supostamente sérias se puseram a brincar com coisas de facto sérias (embora muito menos sérias do que agora) aconteceu isto

Haveria muito mais a dizer mas para já ficou esta descarga de adrenalina de um editor frustrado com a mesquinhez de tudo isto. 


Adenda

Pediram-me mais detalhes sobre as alterações propostas.

Podem consultar tudo aqui, mas verão que não há muito mais: alargamento do prazo da vigência do Preço Fixo para 24 meses; ligeira melhoria nalgumas definições (mas só naquelas onde incide a vigência dos 24 meses); cláusulas sobre os descontos acima referidas.

Pediram-me também mais informações sobre a tal possível influência da RELI. Não posso, obviamente, revelar a fonte em causa e, também para mim, não é mais do que um rumor pois quem me passou essa informação não tinha provas que me tenha apresentado. Mas que é, de todos os intervenientes ou possíveis interessados, a única "força" com interesse nas mudanças específicas que vão, aliás, bem ao encontro das medidas "de guerra" (a expressão sua) do manifesto de apresentação dessa associação... isso, como convirão, parece ser por demais evidente.

 

4/18/2020

Carta Aberta aos organizadores da RELI

Caros Amigos,

Foi com grande satisfação que soube de uma iniciativa que finalmente teve lugar. Infelizmente aconteceu agora e pelos piores motivos.

Estamos todos lembrados da LI original de finais de 90 e começos de 2000. Infelizmente, nessa altura, a incapacidade de os independentes se unirem (um problema muito português) foi gritante e triste para quem via do outro lado da barricada.

Insisti nessa ideia em três Encontros Livreiros na Culsete. Referi o exemplo da Feria Chilena del Libro que se tornou a cadeia de livrarias mais pujante e de maior dimensão no país contra os gigantes  espanhóis que o invadiam.


1. A situação actual:

A cadeia do livro em Portugal entrou em estagnação quase total. Há várias iniciativas para condicionar os leitores para a compra online mas nunca houve grande adesão a este canal - o leitor português é, por definição, avesso às novas tecnologias. Claro que as vendas online subiram mas as vendas online não representam sequer 5% do total de vendas da maior parte das editoras e livrarias. Que tenham subido dois ou três pontos percentuais será, talvez, já muito exagerado.

Assim as editoras suspenderam a produção e as livrarias fecharam portas e a maior parte das empresas encontra-se em lay off.

A situação é muito recente, muito incerta e demasiado complexa para ter gerado mais do que um começo de discussão preocupada.

O problema das sociedades modernas (e por reflexo das economias modernas) é que não estão preparadas para lidar com incertezas. As incertezs com que a área do livro sempre viveu, como as das sociedades modernas, são incertezas controladas. Sabemos as variantes e os limites dessas incertezas, conseguimos prever os melhores cenários e os worst case scenarios. Com a pandemia tudo é uma incógnita total.

Em Portugal e no mundo as economias do livro estão presas aos números de leitores que são sempre residuais dentro do grande cenário económico. Claro que a dimensão dos países dita a outra questão: Portugal é um país pequeno com um número ínfimo de leitores relativamente à percentagem de população. As estatísticas que existem são falseadas ou muito pouco rigorosas (a última indicava que 47% da população lia livros e que os restantes 53% só não lia por falta de tempo... a coragem de ter lançado uma estatística destas roça níveis de ridículo indizíveis). Na realidade a experiência diz aos editores portugueses que, com sorte, teremos 5% da população a ler livros. Há, portanto, excesso de livros produzidos para a procura existente.

Como tal a economia do livro em Portugal é, no mínimo, periclitante. Livrarias e editoras de todas as dimensões dificilmente vão aguentar os resultados da estagnação comercial e do período de recessão que necessariamente se lhe vai seguir sem apoios estruturais. O mesmo, contudo, acontece com a maior parte dos sectores de actividade. E o mesmo acontece com a maior parte dos sectores de actividade em todos os países afectados.

Com uma pandemia a questão macro económica deixa de ser uma preocupação centrada nos Estados e tem de passar para uma discussão supra-nacional. Os governos dos vários países afectados não têm condições económicas para resolverem por si a situação e os seus efeitos. É simplesmente impossível. As medidas que venham a ser tomadas para "segurar" sectores da economia vão ser escolhas difíceis para os governos e as indústriais culturais serão - como sempre em tempos de crise - as que mais irão sofrer porque são sempre consideradas não-essenciais. Quem tiver ilusões aqui, desengane-se. As soluções e apoios para as indústrias culturais serão das que mais tardarão para um sector que, por já viver habitualmente de apoios e pouco ter desenvolvido economias próprias, será dos que mais rapidamente passará dificuldades.

Acredito pessoalmente que 30 a 60% das empresas ligadas às indústriais culturais vão insolver. Sobreviverão os projectos mais economicamente bem pensados e estruturados, desaparecerão projectos quixotescos alicerçados sobretudo em boa vontade mas sem estratégia económica - algo habitual nas indústrias culturais.

Se e quando chegarem apoios, será tarde demais para muitos até porque a restante crise que afectará o país e o mundo ditará uma recessão com efeitos na compra de bens.



2. O aparecimento da RELI


A RELI parece ser finalmente a concretização de uma ideia antiga que teve vários falsos arranques nas últimas 3 décadas em Portugal. Foi finalmente possível por via de uma combinação de factores negativos entre os quais o medo, a incerteza e o facto de haver tempo para os livreiros independentes finalmente poderem parar - a maior parte das livrarias independentes em Portugal tem 0 a 3 funaionários para além dos donos das livrarias que também geralmente lá trabalham.


A possibilidade de concretização da ideia prende-se sobretudo com um conjunto de projectos livreiros criados nas últimas duas décadas e que aliaram à simples criação do negócio uma consciência da actividade dentro do plano económico. Há livreiros, finalmente, que têm preocupações económicas e que pensam os seus projectos dentro dessa realidade. Desde o 25 de Abril de 74, em Portugal abriam e fechavam regularmente livrarias que tinham apenas como base "boas intenções".

Foi a situação actual e essa maior sensibilidade económica que levou os livreiros portugueses a contrariarem uma ancestral aversão ao associativismo. Essa aversão é fundamentalmente cultural e está ligada ao medo da evolução e inovação bem como a uma tradicional incapacidade de dialogar.


A realidade, contudo, mudou: há livreiros que estão dispostos a fazer mais sacrfícios do que outros para obter resultados que vão ser proveitosos para todos (ao contrário do que aconteceu nos tempos da LI). E há livreiros que têm ao seu alcance conhecimentos para pensar no negócio como um negócio e não como ideia ou mero mecanismo de sobrevivência.




3. A Carta Aberta da RELI


O tom belicista, pessoalmente, incomodou-me - acho-o desnecessário e não acredito que reflicta o que muitos livreiros acham - ainda assim percebo que talvez tenha sido usado mais para efeitos internos de criação de uma união do que para quaisquer outros.


Pondo essa questão de somenos de lado analiso os pontos indicados:


1.º Garantia da extensão das medidas governamentais às livrarias independentes
Extensão das medidas de apoio à tesouraria que vierem a ser aprovadas pelo Governo ao comércio em geral e às livrarias independentes em particular, de modo a garantir que a banca não exclui o pequeno comércio das candidaturas às linhas de financiamento. 

Um objectivo evidente e consciente. A união ajudará certamente a que o pedido ganhe consistência. Infelizmente, contudo, temo, pelos motivos que invoquei no ponto 1. desta minha carta, que possa não chegar.

2.º Compras institucionais
Reforço dos programas de aquisição de livros e revistas para as bibliotecas públicas, escolares, ou municipais  mesmo em situações de encerramento temporário forçado — através de consultas preferenciais às livrarias independentes, de acordo com a sua proximidade e não de acordo com o preço, que deveria ser o do PVP dos livros ou fixado num desconto mínimo (máximo de 10%) de modo a facilitar e não impedir a participação destes livreiros independentes nessas consultas públicas. Todos sabemos que não é possível exigir dos livreiros descontos que são muitas vezes iguais ou superiores aos que as condições comerciais praticadas pelas grandes editoras nos permitem.

Objectivo bonito mas irrealista por vários motivos: a) viola a legislação da concorrência; b) em termos realistas as livrarias independentes não têm meios nem conhecimentos suficientes para satisfazer os requisitos burocráticos inerentes à participação em processos de aquisição estatais que são tão complexos que quase precisam de um economista e um advogado na sua concretização; c) nos próximos anos as bibliotecas e compras em geral de organismos estatais (que já eram baixíssimas) vão diminuir.

3.º Arrendamentos e despejos
Apoios financeiros a fundo perdido destinados ao reforço de tesouraria ou ao pagamento das rendas, em articulação com as medidas que vierem a ser aprovadas para o comércio em geral para a restauração e hotelaria, para as micro e pequenas empresas, tendo em consideração que a especulação imobiliária, principalmente nas grandes cidades, foi a primeira responsável pelo encerramento de muitas livrarias independentes e do comércio de proximidade em geral. Nos tempos que virão, esta é uma cautela que os governos e as autarquias têm que assegurar.

Esta é uma medida realista que deverá passar pelo reconhecimento de um estatuto de utilidade cultural que crie regimes de excepção.

4.º Seguro de salários e rendimentos de sócios-gerentes
Seguros de salários, ou equivalente, de modo a garantir um rendimento mínimo a todos e enquanto os efeitos da epidemia durarem. Em caso de layoff ou situação equivalente os rendimentos mínimos devem contemplar, obrigatoriamente, os sócios-gerentes das micro e pequenas empresas. Muitas das vezes são esses sócios-gerentes os únicos trabalhadores efectivos nos estabelecimentos, e a sua sobrevivência depende exclusivamente do exercício dessa actividade;

Como para milhares de pequenos negócios (a grande maior parte do nosso tecido comercial e industrial de micro e pequenas empresas justifica-o) faz todo o sentido.
 
5.º Apoio directo à RELIRede de Livrarias Independentes
Apoio à constituição da Associação RELI, nomeadamente para construção de um site com venda online e georreferenciação das livrarias aderentes à rede, o qual constituirá o embrião de uma central de compras e de distribuição. Outros apoios serão apresentados de acordo com o evoluir da situação de calamidade pública.

Este pedido está mal orientado: viola as regras básicas da concorrência. O que a RELI pede nunca poderia ser concedido em regime de exclusividade e o Estado não sustentará empresas. Não é possível pura e simplesmente. O que a RELI deveria ter pedido era apoio estatal específico para ajuda na candidatura a fundos (europeus e outros) que permitissem realizar este projecto. Erro de sintaxe ideológica que poderá custar caro. E falta de visão: este deveria ser o foco principal da acção da RELI porque é o único que assegura o futuro.

6.º Cumprimento da Lei do Preço Fixo, mesmo em tempos de emergência
Exigir o cumprimento da Lei do Preço Fixo, sem subterfúgios nem atropelos, quer por parte de algumas grandes cadeias de livrarias online — que praticam descontos acima dos permitidos pela lei —, quer pelas próprias editoras — que concorrem com os sites das livrarias através da venda a retalho nos seus próprios sites.

Mais um pedido mais enunciado. O ponto que deveria ser fundamental aqui era um pedido urgente de revisão da lei para que as multas pela violação da lei do preço fixo fossem efectivamente proibitivas para os prevaricadores (por exemplo que quem violasse a lei do preço fixo e fosse apanhado ficasse proibido de vender livros durante um período de vários meses). Neste ponto, como no anterior, a RELI não pode ficar à espera que o Estado encontre as soluções (nem deveriam querê-lo!). Estas têm de partir de propostas suas.

Aqui quero, contudo, relembrar que sou pessoalmente contra a lei do preço fixo por uma questão de observação fria das implicações e efeitos da sua aplicação ao longo de várias décadas no nosso país: nunca funcionou no objectivo que se propôs de defender pequenos livreiros, editores e o leitor. Se alguma coisa deveria acontecer era uma luta e um pedido de regulamentação legal do desconto comercial. Esse seria o único mecanismo que efectivamente protegeria pequenos livreiros, editores e os leitores. E sê-lo-ia porque era o único mecanismo que abriria portas a um liberalismo comercial definido dentro de regras comuns, o resto ficaria a cargo da imaginação e capacidade e risco de cada agente do livro - e os pequenos livreiros aí tem uma vantagem na agilidade e criatividade que as grandes cadeiras não terão. Tenho-o defendido ao longo dos anos e a minha opinião encontra-se expressa e declarada em diversos textos espalhados pela internet e não só.

Quanto às medidas estruturais que propomos para discussão, consideramos que, a seu tempo, teremos obrigatoriamente que as discutir franca e abertamente no sentido de evitarmos, de vez, alguns dos procedimentos que impedem as boas práticas da concorrência, nomeadamente:
a) Feiras do Livro: facilitar a participação dos livreiros independentes, fiscalizar a aplicação de descontos ilegais.

A primeira parte da reclamação acima soa-me a violação da lei da concorrência e acima de tudo é fruto de uma palermice histórica que consiste no facto (historicamente justificado mas hodiernamente irrealista) de as livrarias e editoras estarem representadas na mesma associação profissional.

b) Fiscalização da actividade comercial de venda a retalho de livros, através do IGAC e da ASAE: prática de descontos pontuais acima do permitido e de promoções de duração superior ao estipulado na Lei do Preço Fixo, quer em algumas redes de livrarias (físicas ou online) quer em outros pontos de venda de livros.

Sobre isto já me pronunciei atrás.

c) Livro Escolar: a venda ao público feita directamente pelas editoras de livro escolar, os vouchers do Ministério da Educação que deveria ter sido uma medida para apoiar a rede livreira e afinal não foi.

Este ponto envolve um sistema há muito corrompido e que, por sua vez, envolve verbas monstruosas. É uma luta que me parece há muito perdida salvo num processo judicial devidamente fundamentado. É, creio, uma luta muito para lá da capacidade actual e imediatamente futura da RELI. O que, note-se, não lhe retira validade e justa causa.

d) Instalação de novas livrarias, e das que vierem eventualmente a ser despejadas quando terminar o estado de emergência e de calamidade pública, em edifícios que sejam propriedade do Estado, das Autarquias e de Fundações ou Instituições privadas dependentes do OE.

Ideia curiosa mas que teria de ser melhor estruturada e deveria passar por um plano abrangente das RELI para assumirem, por exemplo, as livrarias da rede de Museus públicos. Algo que só faria sentido a partir do momento em que a RELI conseguisse concretizar a sua central de compras e um conjunto de mecanismos centralizados que a mim me parecem dever ser o foco principal mais urgente e importante da RELI. Fora isso a questão da preferência na ocupação desses espaços pode ser nova violação das leis ca concorrência...

4. Em súmula:

Encontro na carta da RELI várias boas ideias mas muitas outras que me parecem uma vontade de encaminhar as livrarias independentes para um estado de livrarias dependentes como já acontece em demasiados sectores da cultura em Portugal. Isso é preocupante porque a mais-valia de uma livraria independente é ser... independente.

Retomando o ponto fundamental e na perspectiva do editor chamo a atenção para que estruturar planos e propostas tem de ser uma prioridade imediata da RELI porque assim que actividade retome os livreiros não terão tempo - como não tinham antes. Chamo também a atenção para uma dificuldade que antecipo desde já e que tem de passar por um código de princípios comum às RELI para justificarem o posicionamento de mercado que pretendem pois alguns dos membros da RELI têm históricos de incumprimento de pagamentos tremendos (felizmente são poucos no total dos membros)*. A RELI só será levada a sério no mercado se criar mecanismos e princípios comuns e os cumprir. Sem isso será um amálgama de intenções mas não passará daí.

Não é isso que desejo da RELI na qual vários membros são clientes da minha editora e de cujos alguns membros sou eu pessoalmente cliente.

Se estas notas puderem ser úteis e ajudar, ficarei contente. Espero que a RELI se torne uma realidade pujante e poderosa mas não a quero ver dependente. 

Bem-hajam e contem comigo no que me for possível,

Hugo Xavier
Editor

* Quero aqui clarificar a questão que aponto: há um número, felizmente reduzido, de entre os livreiros que integram a lista de membros da RELI que têm um histórico - muitas vezes orgulhosamente assumido - de incumprimentos em termos de prazos de pagamento. Há também entre os membros da Rede de Livreiros Independentes livreiros que não são independentes pois contam com apoios estruturais camarários e outros e vivem a suas expensas - curiosamente parece coincidir nesses a maior percentagem de incumprimentos em prazos de pagamento (percebem a minha preocupação em que a RELI não passe a viver dependente?).

Por último uma questão que me deixa sempre inseguro: o que é uma livraria independente? A Bertrand não é uma cadeia de livrarias independente, a Joaquim Machado S.A. não o é? O conceito de independência é-vos perigoso. Uma rede de pequenos livreiros é algo que mais sentido mas isto, claro, são questões de pormenor...

8/10/2019

Os editores portugueses por Serafim Ferreira


Pedro Piedade Marques continua o seu excepcional trabalho de recolha de materiais sobre a história da edição recente em Portugal. Depois da publicação da fotobiografia sobre Fernando Ribeiro de Mello (Edições Afrodite de sua fama), republica o livro «Olha de Editor» do editor Serafim Ferreira (1939-2015) em edição revista e aumentada.

Nesse livro, originalmente publicado em 1999, Serafim Ferreira traça pequenos esquissos (pequenos mas precisos e preciosos) sobre os editores portugueses que fizeram o século XX da edição nacional. Os realmente relevantes, os realmente marcantes.

Tirando estes editores poucos ficam que valha mencionar. Aliás a necessária menção de outros editores deve-se mais a inovação logística ou técnica mais do que a uma ideologia e/ou a um conceito editorial. Daí não aparecerem nesta edição referidos os nomes de Lyon de Castro ou Cruz Santos entre alguns mais. Daí também não os editores que fizeram a edição portuguesa mas cuja obra começou no século XIX (Francisco Franco, Davide Corazzi, António Maria Pereira, etc.).

Num país em que a memória de qualquer área de negócio é tratada com desdém e desinteresse, este livro é uma pérola para uma área em que parece haver ainda menos memória do que em muitas outras.

6/17/2016

Henrique Mota preside à Federação Europeia de Editores




Editor independente que em 1997 fundou a Princípia Editora, e livreiro também independente, na Ferin, desde 2011, Henrique Mota assumiu hoje a presidência da Federação Europeia de Editores (FEP) de que era vice-presidente desde 2014..

A Lusa divulga a notícia, os media replicam-na e a APEL congratula o novo presidente da FEP. Mas a eleição justifica muito mais do que notícias, declarações e entrevistas.  Os profissionais, as instituições públicas e as restantes entidades que actuam no mundo do livro em Portugal devem, precisam, entender esta  escolha interpares de uma forma bastante mais abrangente e profunda do que a honra de ter um português numa posição internacional que prestigia a edição e a cultura portuguesas.

A Federação Europeia de Editores agrega 28 associações de editores dos mais diversos países europeus, produz relatórios e informações estatísticas relevantes para a indústria do livro e assume posições da maior importância para defesa da primeira das indústrias culturais na Europa com um volume de negócios de perto de 22 biliões de euros. A FEP é especialmente activa no que se refere à divulgação do livro, à promoção de hábitos de leitura, à salvaguarda de direitos de autor, à contenção de impostos sobre todo o tipo de suporte de leitura,  e em tudo quanto signifique diversidade, pluralidade e democratização do acesso à informação e ao conhecimento através do livro, incluindo o importante papel desempenhado pelos protagonistas independentes.

É-me grato salientar o empenhamento, o entusiasmo e a eficácia com que Henrique Mota tem vindo, de há muito, a representar a APEL e a defender os interesses dos profissionais do livro em Portugal junto das mais diversas instâncias internacionais. Posso testemunhar com isenção o mérito do trabalho e dos resultados que tem obtido, porquanto nem sempre, nem em tudo, estivemos ou estamos em completa convergência de ideias; mas sempre temos mantido uma relação frontal, aberta e séria que me permite não ter qualquer dúvida de que o exigente mandato que agora inicia não se limitará a um  mero exercício de prestígio pessoal, mas sim ao desbravar de caminhos que reforcem  o sector.


É tempo propício para os profissionais do livro em Portugal porem de lado as diferenças que os separam e, concentrando-se no essencial dos muitos interesses que têm em comum, se envolverem activamente, por via do movimento associativo, nas oportunidades que esta eleição pode propiciar para acrescentar valor à edição e comércio livreiro. É também momento certo para as instituições públicas que tutelam o livro no nosso país e as restantes entidades que o tomam como instrumento privilegiado de desenvolvimento sociocultural, juntarem esforços no sentido de robustecer e dignificar o conjunto de acções que levam à sua divulgação junto do público leitor e ao fomento do interesse pela leitura por parte de novos públicos.

6/15/2016

A edição contemporânea na Iberoamérica



Apresentação e programa do Simpósio Internacional que visa fazer um ponto da situação a partir dum olhar multidisciplinar assente na apresentação de comunicações por especialistas nesta temática, podem ser consultados aqui.

4/17/2016

Festival Literário da Madeira

Como aqui há uns tempos referi, fui convidado pela primeira vez para um festival literário. Apesar de geralmente fugir deste tipo de eventos porque os vejo geralmente como espaços de divulgação do universo literário (que não ficaria propriamente mais enriquecido pela minha presença) e porque sou um pouco anti-social (lá o dizia a minha mãezinha), aceitei este convite simplesmente porque havia uma mesa de editores com um tema que acho essencial que seja tratado de forma aberta: na maior parte do pouco debate que se faz em torno do livro e da edição em Portugal raramente se discute de forma aberta critérios e processos editoriais de escolha e tratamento de originais o que leva a que os escritores, e muitas vezes o público, vejam os editores como uma espécie de bicho-papão.

Depois de ter aceite o convite feito pelo Mário Rufino, chegou-me à atenção o texto da Joana Emídio Marques. Como sei que não pertenço a nenhum "grupo" (apesar de não estar "contra" ninguém - que para muita gente parece ser a única alternativa a "pertencer"); porque havia pessoas que admiro (o Afonso Cruz que encontro raramente mas com quem tenho sempre excelentes conversas e troca de recomendações literárias, para além de ser das pessoas mais lúcidas que conheço a falar de religião), a Cláudia Clemente (que publiquei na Ulisseia e com quem me divirto sempre imenso), a Ana Cássia cuja escrita, sobriedade e desassombro acho raras, o Nuno Seabra Lopes com quem é sempre um prazer falar de edição... lá fui eu.

Numa nota algo egoísta, devo também confessar que, apesar de já ter andado por quase todo o Portugal, a Madeira era ainda solo virgem para mim.

Os meus três dias de Festival Literário da Madeira deram-me o prazer de rever muita gente que não via há muito tempo e vários jornalistas que praticamente apenas conheço de trocas de e-mails e alguns telefonemas. Assisti a sessões quase todas interessantes. Passeei de manhã bem cedo pelo Funchal a pé (à procura de nozes de Macadâmia), uma cidade bonita cheia de gente simpática. E lá estive no meu painel a falar do que acho importante - infelizmente sem a presença da Clara Capitão que eu queria conhecer mas que não conseguiu chegar devido às más condições atmosféricas.

Se alguma coisa tenho de criticar é que acho que as sessões - com um moderador e 4 convidados - deveriam ter maior duração. Os temas eram abrangentes e complexos demais para tão pouco tempo.

Faltou também alguma relação com escritores residentes locais - também não sei se haverá muitos.

Fiquei impressionado pelo bastante público que afluiu e gostei bastante de saber que os escritores tinham ido, durante a semana, a várias escolas.

Aquilo que temia, vindo de fora, era que o Festival fosse algo muito feito para consumo próprio e isso garantidamente não foi. Houve público e diálogo com esse público.

Há muitos anos que escrevo que o que falta em Portugal na área do livro é uma política e/ou campanha continuada de promoção do livro e da leitura. Ocorre-me que, independentemente dos diferentes organizadores, pode criar-se uma rede de festivais literários e de eventos a eles associados - já que do governo nada há a esperar. Um conjunto de festas do livro que associem, para além da convivência com os grandes escritores, eventos de promoção da leitura para crianças, a workshops de escrita ou de contar histórias, aquilo que, afinal, é essencial para se ganharem novos públicos: uma educação continuada para a escrita e para a leitura.

Em todos os festivais faltam eventos para a infância e juventude, que incentivem a leitura e a escrita (não separadamente mas em conjunto).

Aqui há uns anos não havia quase nada. O que há agora é muito melhor do que nada. Claro que pode melhorar, sim. Mas como em tudo, demorará tempo.

Se há alguma máquina de controle ou grupos instalados, até é possível. Eu diria que é natural. Acontece em todos os eventos culturais cá e no estrangeiro (e não apenas nos literários). São questões inevitáveis mas só seriam criticáveis se tivéssemos uma alternativa interessada em ser alternativa e nós por cá, na nossa literatura, não temos.

Os efeitos nefastos também me parecem diminutos, precisamente porque os escritores alternativos portugueses são, intencionalmente, alternativos e escrevem, geralmente, para públicos alternativos. Gostariam eles de ser convidados? Viriam eles aos festivais? Será simples criar uma mesa com escritores não mainstream? O público alternativo afluiria aos Festivais?


Que intervenção têm, querem ou podem ter os escritores, editoras, agentes do meio que não estão habitualmente nos festivais? O Festival Literário da Madeira é promovido por uma pequena editora, a Nova Delphi. Não me parece muito absurdo ou sequer improvável que escritores, editoras e outros agentes "alternativos" possam apresentar sugestões, ideias, propostas aos Festivais já existentes ou a municípios que ainda os não alberguem.

Se a Booktailors organiza muitos deles... haverá outra entidade/empresa com capacidade para o fazer? Se sim, porque não o faz?

Resumindo: eu não notei nenhum indício evidente de um possível complot (provavelmente precisaria de ir a muitos mais festivais para notar os padrões que a Joana identifica). Mas mesmo que o tivesse identificado, conhecendo o nosso meio editorial como conheço, pergunto-me se há oposição interessada em ser oposição e pergunto isto porque tradicionalmente em Portugal é fácil falar-se mal mas raramente quem o faz tem vontade ou capacidade de ser alternativa eficaz e concreta.

Quanto ao FLM, fui bem tratado pela organização a quem agradeço a oportunidade de falar daquilo que acho importante falar; fiquei contente com a muito boa afluência e interesse do público em geral. Adorei o Funchal e só não consegui mesmo foi encontrar as nozes de Macadâmia.

4/12/2016

História Universal da Pulhice Humana


HISTÓRIA UNIVERSAL DA PULHICE HUMANA, Vilhena
E-Primatur, 17,90€
Editor: Hugo Xavier
Capa: José Vilhena / Design: Paper Talk
Produção: Papelmunde

Às coisas que são boas convém não mudar, para não estragar. Foi assim que se re-publicou a “História Universal da Pulhice Humana – edição completa, integral e nunca censurada dos três volume originais: Pré-história / O Egipto / Os Judeus”. Versão facsimilada, procurou manter a mancha e layout originais dos livros ilustrados, incluindo uma mesma opção similar de papel, com aquele contraste e sujidade típicos, mas obtendo uma qualidade surpreendente em termos de opacidade.

De um ponto de vista editorial, nada há a registar, pois a obra surge-nos como Vilhena a pôs no mundo, sendo de apreciar o cuidado da E-Primatur com as guardas ilustradas e o facto de ter optado por coligir a obra em cartonado com transfil e fitilho, algo inesperado numa obra de Vilhena, mas que calculo que o próprio teria gostado de fazer, se assim lhe tivesse sido permitido.

Pessoalmente gostaria que a autobiografia, a introdução e as folhas de rosto tivessem mantido uma linha gráfica similar ao resto do livro, optando-se pela mesma fonte, apesar de compreender que a editora terá pretendido manter o seu registo habitual e fazer a diferença entre facsímile e conteúdos novos de forma clara e inteligível.

A produção não tem problemas a registar, excepto um ligeiríssimo desacerto na guilhotinagem da guarda (algo que deverá apenas ocorrer em alguns dos livros), o que é mesmo uma coisa de picuinhas e não interessa a ninguém.

Acima de tudo, este livro presta um serviço público a uma das mais interessantes personagens do século XX português, um autor, ilustrador, e editor com todas as letras a que tem direito, que influenciou toda uma estética de humor e de ilustração e que vê, neste livro, uma muito, mas mesmo muito justa homenagem.

Deixo igualmente a nota que esta é uma crítica especial. Desde logo porque critico uma obra de um colega não só de profissão, mas também de blog, o que fará com que ele possa ir lá apagar o post caso não goste, para além de me colocar a jeito para vir ele criticar os meus.

Nuno Seabra Lopes, editor e consultor editorial