10/27/2013

iResponsabilidade

Imagem publicada em 'De Rerum Natura' (6/2010)

Vai longe o tempo em que jornais e revistas de referência publicavam suplementos sobre livros e leitura. Nos dias de hoje, para além do desaparecimento desses valiosos suplementos, vamos até assistindo à redução do espaço dedicado à crítica literária e à divulgação de obras de interesse relevante, como também à notícia e informação sobre os eventos que ocorrem com cada vez maior frequência no mundo da edição. Tudo concorrendo para um cada vez mais insignificante fomento dos hábitos de leitura por parte de um sector, a imprensa, que tanta responsabilidade tem e tanto tem a beneficiar com o alargamento do número de leitores e a quantidade de livros que são lidos.

Retire-se o espaço «concedido» aquando da realização das Feiras do Livro, aquele que é utilizado quando estala alguma polémica mais ou menos estéril, e aquele outro que é dedicado à edição de livros assinados por figuras mediáticas, e pouco resta na atenção que os periódicos generalistas atribuem ao livro. Com uma excepção: a utilização que dele fazem para ofertas ou vendas a preços marginais de obras produzidas especifica e unicamente para promover as vendas dos respectivos jornais ou revistas, com consequências devastadoras na falsa noção do seu real valor económico e cultural.

Bem pelo contrário, está na moda, é «para a frente», dedicar páginas e páginas aos novos meios de comunicação, ao digital, à internet, e aos gadgets electrónicos; mesmo que se escreva sobre o que apenas se conhece superficialmente e se especule relativamente ao que ainda não passa de algo que só existe no plano do imaginário, ou até sobre o que não vai para além de escolhas pessoais sem interesse público nem fundamentação técnica apropriada.

Não ponho de forma alguma em causa o progresso civilizacional que o digital veio proporcionar, nomeadamente no que respeita à democratização do acesso ao conhecimento e, por essa via, ao desenvolvimento sociocultural dos povos. O que critico e considero verdadeiramente grave, é que, por intenção ou impreparação, se comece a induzir nos jovens, e nos próprios pais, a ideia de que o livro é coisa estranha, algo do passado mesmo que sob a forma digital.

Arrisco-me a ser mais assertivo, e dizer que quando ainda se sabe tão pouco sobre os efeitos que a perda de hábitos de leitura poderá ter no desenvolvimento da inteligência humana, e que o pouco que cientificamente se vai conhecendo aponta no sentido de que a leitura em suporte electrónico está a produzir alterações tendencialmente nefastas na função cerebral, a abordagem que vem ganhando predominância na comunicação social é perigosamente superficial.

Não sendo um tema novo nem minha preocupação recente, a causa próxima deste alerta resulta de artigo publicado em revista semanal de referência e de grande circulação. No «iCrianças», título do artigo em causa, são sumariadas as tendências para o uso e abuso de equipamentos e brinquedos digitais por parte de jovens, desde as mais tenras idades, e são elencadas algumas boas práticas que os pais devem seguir para orientar e controlar a sua utilização. Quanto a esta componente nada teria a apontar, até pelo alerta que também é feito para os aspectos nocivos da utilização exclusiva e excessiva dos gadgets electrónicos, não fora o total esquecimento a que o livro é vetado quando se fala em formas mais adequadas de ocupação dos tempos livres.

Porém, tudo se torna verdadeiramente problemático quando, por exemplo, o artigo refere, sem crítica, a atitude de pais que para uma criança de 3 anos assumem ser adequado ficar dez minutos a jogar com gadgets electrónicos antes de dormir. Ou, ainda mais perturbadoras, as referências a projectos escolares que defendem a predominância do ensino suportado no apoio digital, mencionando afirmações como: “E as hipóteses são quase infinitas – existem mais de 40.000 aplicações da Apple [!!!] na área do ensino” ou “Não é necessário que a aprendizagem seja 100% digital, mas privilegia-se essa via”.

Por tudo isto, reclamo que no que respeita ao mundo digital e à sua relação com a palavra escrita, a imprensa em particular e os restantes meios de comunicação em geral, estejam bem atentos à sua… iResponsabilidade.

Rui Beja

2 comentários:

  1. Acho que, no fundo, os jornais fazem o mesmo que a generalidade do setor do livro, que considera os produtos pela sua rentabilidade, que só aposta na novidade como factor de atração, que desconsidera a qualidade e pertinência cultural como elemento importante de decisão.
    No fundo não é cultura, just business, como sói dizer-se.
    Acho que é difícil acusar os jornalistas de alguma coisa, pois difícil tem sido para eles verem impresso aquilo que acham que tem pertinência. As condições de trabalho deles mudaram e as administrações passaram a interferir no trabalho editorial (nada de novo, aliás).

    Quanto aos contributos para a educação... infelizmente as modas levam ao desprezo pelo já adquirido e, mais importante, ao desprezo pela compreensão das consequências das novas práticas. Não julgo que tudo seja mau na aprendizagem digital, mas que existem imensas práticas nocivas cujas consequências já não só se vislumbram como se tornaram óbvias, isso sim. E compete aos reguladores perceber as consequências dos seus atos e gerir essa fusão do impresso com o digital (tendo em conta as externalidades e não só os custos associados).

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Apenas algumas notas complementares ao comentário do Nuno:

      1 - Nada tenho contra os jornalistas. Muito pelo contrário, todos aqueles com os quais me tenho cruzado (e são muitos) ao longo destas quatro décadas no mundo editorial, merecem-me o maior respeito profissional e consideração pessoal. Com muitos deles continuo a manter um simpático e amistoso relacionamento, e a todos devo a gratidão de quem sempre se sentiu bem acolhido pelos profissionais da informação.
      Porque sei bem das dificuldades que enfrentam e dos esforços que fazem para cumprir a sua missão, devo esclarecer que o meu texto não visa criticar a sua actuação, mas sim o contexto em que exercem a sua insubstituível actividade.

      2 - A incipiente cobertura que a comunicação social deu à importante conferência que ontem teve lugar, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian e tendo como tema central «Os Livros e a Leitura: Desafios da Era Digital», constitui o exemplo mais recente do que afirmo. Isto apesar do interesse das matérias agendadas e da qualidade dos diversos oradores, onde se incluía John Thompson, um dos mais reputados estudiosos das mudanças estruturais ocorridas na indústria da edição de há dez anos a esta parte, com enfoque nos mercados anglo-americanos,
      Aliás, na sessão de encerramento, que incluiu um brilhante relato do jornalista Henrique Monteiro sumariando as conclusões da Conferência, o administrador da Fundação Gulbenkian, Eduardo Marçal Grilo, fez uma também excelente intervenção sobre a temática abordada e deixou uma crítica explícita à falta de comparência da comunicação social num evento que mobilizara a presença de mais de um milhar de interessados no ensino, no livro e na leitura.

      3 – Já no que respeita à postura do sector do livro, nomeadamente a uma predominância da vertente comercial, diria que estamos numa fase em que a «pescadinha de rabo na boca» se aperta cada vez mais. Como dizem alguns editores da velha guarda, sempre foi preciso ganhar com a venda do que é mais comercial para poder publicar o que é intelectualmente mais gratificante. O que estará a acontecer nos dias de hoje, segundo John Thompson, é que a pressão do mercado está a forçar os editores a concentrar esforços nos livros de maior dimensão e com mais potencial de venda.
      Isto porque, segundo as conclusões dos estudos e entrevistas que tem feito, há uma conjugação de: i) maior capacidade para a exigência de elevados descontos comerciais por parte do retalho com ênfase nos hipermercados e grandes cadeias de livrarias (especialmente no Reino Unido depois de terminar o Net Bokk Agreement); ii) aumento de valor das antecipações de direitos (especialmente nos Estado Unidos por via do maior poder dos Agentes Literários); iii) estagnação/decréscimo da quantidade de livros vendidos

      Eliminar