5/13/2013

Transmissões de poder


1 - António Guerreiro (AG) escreveu um estimulante artigo no suplemento Ípsilon do Público de 19/4, o mais respeitado diário português e o jornal que o albergou depois da reestruturação do Expresso, o mais importante semanário português, onde perorou durante mais de uma década, talvez duas, não contei. E fá-lo continuando um velho tema seu – o do Lugar do Escritor, hoje (palavras suas) muito diferente do de antão.

2 - E qual é o lugar do escritor, ou melhor, qual era, ou seja, nesta dialéctica Babel de hoje/saudades de Sião, qual deve ser o lugar do escritor, para AG? Literalmente (palavras suas) o lugar do morto:

3 - «(...) o que dantes se chamava ‘escritor’, para quem a escrita começa quando o Autor entra no seu desaparecimento, na sua própria morte. (...) Agora trata-se exactamente do contrário: suprimir a escrita em proveito do Autor.»

4 - A mim, confesso que – enquanto autor vivo, ou não inteiramente morto – me faz espécie esta sorte de desqualificação que (em vida) nos é feita. Sei lá porquê, apetece-me continuar a escrever, a lutar por um lugar ao sol e, se possível, um lugar pago, premiado e bronzeado. Ao douradinho do Nobel já percebi que, snif, dificilmente chegarei, fui irremediavelmente ultrapassado no ranking, ou pior, nunca me qualifiquei sequer para um lugar perto da pole position. Não bastavam já as outras desqualificações, as do mercado, a das vizinhas da minha mãe, a da Colômbia, a dos prémios literários, as da Colóquio, do JL, da Ler (e, em breve, da Granta) que ora e ora me escapam?

5 - Mas oiçamos Guerreiro, que apesar de cruel merece ser ouvisto: «A figura de José Luís Peixoto neste cartaz publicitário deve chamar-nos a atenção para uma transformação da instituição literária (...)»

6 - Pessoalmente, não simpatizo demasiado com o alvo de AG (o prazer é mútuo, diga-se) nem me desagrada a ensaboadela que o plumitivo (e há quantos anos eu queria usar esta palavra) lhe faz. Mas como gosto de me imaginar capaz de, antiportuguesmente, superar as minhas irritações pessoais e enfrentar a questão, a pergunta que faço, a mim e a quem esteja a ler estas linhas (apesar dos irritantes parênteses, eu sei, já me tentei curar, mas o médico disse que é congénito), é a seguinte: AG tem razão?  Nem digo muita ou pouca, digo: alguma?

7 - Há bocado falei de lugar – ranking, pole positions e tudo – usei de propósito termos anglófonos para dar um ar mais científico. É que é precisamente de lugar que AG está a falar, não de literatura. Ou seja, ele não foi ver se os contos do visado valem ou não a pena – suponho que nem sequer considera a hipótese, e, bom crítico, não lê para não ser contaminado, poderia perder a objectividade, o palato, sei lá)

8 - AG está a fala do tema que o comove, que é o da legitimação em literatura. E repega os resquícios de uma ideia que repete em outros textos mas de que neste apenas há um fumo: o autor desvaloriza-se (ou devia desvalorizar-se, se AG mandasse) na directa proporção em que se «suja» no circo mediático. Na verdade, o autor só poderia ser legitimado por – como outrora – uma comissão de sábios. Mas, na verdade, essa comissão de sábios não chegaria (não chega nunca): teria de ser a comissão de sábios com a qual o sábio que diz «eu» (ser AG ou EPC ou Gaspar Simões ou Zé dos Anzóis vai a dar no mesmo, o importante aqui é o pronome pessoal, «EU») concorde. uma comissão de sábios que o sábio que diz eu... aprove.

9 - Por falar nisso, António Guerreiro e Eduardo Prado Coelho discordavam amiúde. Pelo que não integrariam nunca a mesma comissão de sábios. Ainda me lembro de uma polémica, mais a dar para a conversa de surdos, onde cada um desafiava o outro a vir discutir para a sua rua, se era homem. (A rua de Eduardo sendo a literatura francesa século XX, a de António o romantismo alemão.) Acabaram por desistir, já que nenhum era parvo para se ir meter na boca do lobo.

10 - E, depois, há uma contradição (uma, pelo menos) no texto de AG: se ele reclama para o escritor uma auto-dissolução, uma auto-exclusão, já para si não é tão sacrificial. Pelo contrário, vive no mundo terreno. Sabe que a voz do crítico se legitima tanto mais quanto o medium onde perora tem poder. Terreno.

11 - É muito giro pedir aos outros para se retirarem do mundo e se dedicarem apenas à vida espiritual. Soa a chorar um mundo mais nobre onde apenas a nós, sacerdotes da Nobreza, fosse permitido consumir perecíveis. Era esse de resto o sacrifício a esperar do artista: que, em troca de uma eventual ascensão um dia (se os sacerdotes estivessem bem dispostos) à genialidade, cedessem aos sacerdotes todo e qualquer poder na Terra. Não está mal pensado, mas incorre numa falha lógica: nem todos os escritores querem assim tanto morrer pobres. E nem todos, no passado dourado, o fizeram.

12 - Se estou a discutir o artigo de AG é porque o acho interessante, não para troçar dele. Simplesmente, eu tenho o triste vício da cedilha: onde outros trocam ideias, eu troço ideias. Mas o intuito é o mesmo e o resultado (espero) também.

13 - O parágrafo final tem a sua pertinência: «O monopólio da legitimidade literária (...) já não está do lado daquilo a que se chamou instituição literária, com as suas diversas instâncias; está do lado de quem vende Os Lusíadas por interpostos Peixotos; está do lado dos Peixotos, a quem cabe a definição legítima de Camões como escritor.» Mas é sempre esta a questão, não é? A ascensão dos novos-ricos ao poder em todas as suas instâncias e a queda, dura, da classe aristocrática (ou que se julgava aristocrática, o que vai a dar no mesmo).

14 - O que posso dizer? Perder o poder é sempre chato.

Rui Zink

1 comentário:

  1. O dogma do escritor mártir; não pelo que fez disse ou escreveu, mas porque já está morto e isso até tem uma certa elegância - mórbida, é certo, mas elegante à mesma.

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