Criador de editoras em Portugal e no Brasil,
morreu o editor António Abreu
Por Flamarion
Maués, de São Paulo
Faleceu hoje, 20 de março de 2016, em São
Paulo, o editor português António Daniel Abreu, criador das editoras Cadernos
Para o Diálogo (1971), Textos Marginais (1972), Rés (1975) e Nova Crítica
(1975), todas sediadas na cidade do Porto. Em 1986 ele mudou-se para São Paulo,
onde vivia desde então, também exercendo a profissão de editor, à frente da
editora Landy.
A notícia foi dada por sua companheira, Linda
de Lima, pelo Facebook.
Conheci e entrevistei Abreu em 2012, quando
escrevia minha tese de doutorado sobre as editoras políticas portuguesas do
período do marcelismo e do 25 de Abril, já que suas duas primeiras editoras
tiveram destacado papel na oposição à ditadura portuguesa.
É uma perda lamentável, sem dúvida. Abreu
foi uma pessoa que dedicou sua vida à edição e aos livros, merece todo o nosso
respeito.
A título de homenagem, reproduzo abaixo os
trechos do meu trabalho que tratam das editoras Cadernos Para o Diálogo e
Textos Marginais.
Para que quiser ver a tese na íntegra, ela está disponível na
internet: SILVA, Flamarion Maués Pelúcio Silva. Livros que tomam partido: a edição política em Portugal, 1968-80. Tese de doutorado em História,
Universidade de São Paulo, 2013. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07112013-131459/en.php>.
Duas editoras contra a ditadura
Flamarion Maués
Cadernos Para o Diálogo
Porto
Editor: António
Daniel Abreu.
Início das edições:
1971.
Distribuição:
Livraria Paisagem.
Editora criada em 1971 por António Daniel Abreu na cidade do Porto. Sua origem relaciona-se à atividade profissional de Abreu na Editora Paisagem (ver item sobre esta editora no Capítulo 11), onde ele trabalhava no setor de vendas.
Abreu tinha ligações com setores católicos
progressistas, que faziam oposição à ditadura, e tinha feito parte da Juventude
Operária Católica (JOC) e do Gedoc (Grupo de Estudos e Intercâmbio de Documentos,
Informações, Experiências). O nome
da editora foi inspirado na revista espanhola Cuadernos para el Diálogo[1], que circulou entre 1963 e 1978
e vinculava-se inicialmente ao pensamento democrata-cristão, “evoluindo para
posições próximas à centro-esquerda, para terminar, em sua última fase, com um
jornalismo de corte socialista”[2]. O mesmo grupo que editava a
revista criou na Espanha, em 1965, uma editora com o mesmo nome[3].
Depois
que saiu da Paisagem, no começo da década de 1970, Abreu foi trabalhar na editora
Inova, de José Cruz Santos, também no Porto. Lá ficou pouco tempo, pois decidiu
começar a editar por conta própria. “Comecei a editar
em 1971. Eu tinha 19 anos, então a minha mãe teve que me dar a emancipação,
pois eu era menor de 21 anos”, conta Abreu[4], que desde 1986 vive no Brasil.
“O Abreu, do seu trabalho de vendas,
percebeu que havia espaço para fazer publicações de orientação oposta ao
regime, que condiziam com os sentimentos dele de opositor da ditadura, e
começou a fazê-las, com todo o atrevimento e ingenuidade”, lembra João Barrote[5], que trabalhou com Abreu na Editora Paisagem e depois colaborou com
ele na editora Textos Marginais.
A primeira editora criada por António
Daniel Abreu foi a Cadernos Para o Diálogo, que editou seis títulos em 1971.
Entre os autores estavam Marx (Trabalho
assalariado e capital), Engels
(A
questão do alojamento), D.
Helder Câmara (Espiral de violência)
e Aime Césaire (Discurso sobre o
colonialismo). Este último livro, em particular, “era uma afronta para o
regime, porque a palavra colonialismo tinha sido banida em Portugal”, lembra
Abreu. Os outros dois títulos publicados foram O
império Rockefeller e Comuna de Paris 1871,
de Prosper Ollivier Lissagaray.
Tais lançamentos não passaram despercebidos
pela polícia política. Abreu recorda que:
A Cadernos Para o Diálogo
publicou livros, digamos, muito avançados, a polícia política, a PIDE/DGS, veio
em cima de mim, apreendeu tudo, fizeram um processo, e eu tive que parar com
aquilo porque não tinha mais condições. Qualquer livro que saísse eles vinham
em cima de mim.
Um bom exemplo dessa perseguição foi a
censura ao livro Discurso sobre o
colonialismo, de Aime Césaire. O texto foi retirado da revista francesa Présence africaine, trazida
clandestinamente para Portugal por membros do PCP. O livro começou a ser
distribuído no dia 6 de dezembro de 1971 e dois dias depois já era de
conhecimento da PIDE/DGS[6].
Abreu diz que “neste caso foram informadores infiltrados na gráfica que terão
entregue uma cópia do livro directamente às autoridades quando este estava
pronto para ser distribuído”[7].
O relatório da DGS sobre o livro é curto e
direto: “O autor é negro, comunista e foi em tempos deputado francês. Trata-se
duma diatribe contra a civilização ocidental, numa pseudo defesa das
civilizações negra, oriental e índia. Para proibir”[8].
Para tentar escapar à perseguição e ao
estigma que a Cadernos Para o Diálogo tinha criado junto à PIDE, Abreu resolveu
encerrá-la e iniciar uma outra editora. “Foi quando eu comecei a Textos
Marginais, com uma proposta diferente, mais aberta”, diz Abreu.
Assim, a existência da Cadernos Para o
Diálogo foi curta, cerca de um ano apenas, com seis títulos publicados, todos
com padrão gráfico e editorial profissional e distribuídos pela Livraria
Paisagem. A editora foi vítima das perseguições policiais e da censura da
época, que acabaram por inviabilizar a sua continuidade. Dito de outra forma, a
editora “[...] desapareceu somente por motivos coercitivos”[9].
Abreu criou mais três editoras em Portugal
– Textos Marginais, Rés e Nova Crítica –, sempre no Porto. Em 1986 mudou-se
para São Paulo, onde vive desde então, também exercendo a profissão de editor,
à frente da editora Landy.
Textos Marginais
Porto
Editor: António Daniel Abreu.
Início das edições: 1972.
Distribuidor: Dinalivros /
Brasil: Martins Fontes.
Editora criada por António Daniel Abreu na
cidade do Porto, em 1972, para dar continuidade à sua atividade de editor.
Abreu havia criado no ano anterior a editora Cadernos Para o Diálogo, que havia
tido muitos problemas com a polícia política e a censura, devido aos títulos
publicados.
A criação da Textos Marginais foi a forma
encontrada por Abreu para tentar escapar a esta perseguição, já que qualquer
título que viesse a ser publicado pela Cadernos Para o Diálogo estava fadado à
censura e à apreensão. O nome da nova editora parece ter sido inspirado pela
coleção Cuadernos Marginales, da Editorial Tusquets, de Barcelona, criada em
1969[10].
Os livros editados pela Textos Marginais se
caracterizavam pelo marcado caráter político e ideológico ligado ao pensamento
transformador, de esquerda e marxista, mas não tocavam diretamente na questão
colonial, que, na opinião de Abreu, era o ponto que mais incomodava o regime.
Diz ele:
Antes do 25 de Abril havia uma
“liberdade vigiada” pela polícia política. Os livros eram isentos de censura
[prévia], mas eram apreendidos quando ultrapassavam as barreiras da “legalidade”
imposta. Havia algumas coisas que eles não permitiam de jeito nenhum. Em
relação aos clássicos, Marx, Engels, a perseguição não era tão grande, mas as
coisas ligadas aos movimentos coloniais eles não perdoavam de jeito nenhum.[11]
Antes do 25 de Abril a Textos Marginais publicou
livros como: O sistema irracional, de Paul Baran e
Paul Sweezy (1972); A guerra civil de
Espanha, de Andrés Nin (1972); Contribuição
para a história do cristianismo primitivo, de Karl Marx e
Friedrich Engels (1972);
Os cristãos e a libertação dos povos,
de Yves Jolif e outros (1972); Uma
educação para a liberdade, de Paulo Freire (1972); Discurso sobre as artes e as ciências, de Jean-Jacques Rousseau
(1972); O novo mundo industrial e
societário e outros textos, de Charles Fourier (1973); e Império e imperialismo americano, Celso
Furtado e outros (1973).
António Abreu recorda que:
Os livros da Textos Marginais
eram um sucesso. Quando fiz o primeiro eu tinha um certo receio, porque a
polícia vinha sempre em cima de mim, então eu comecei com 1.500 exemplares, que
já saíam praticamente vendidos. Aí eu fui aumentando a tiragem até que chegou a
10 mil a tiragem inicial. E vendia tudo.
A partir do quinto ou do sexto livro
editado, Abreu passou a contar com a assessoria de João Barrote, com quem havia
trabalhado na Editora Paisagem, e que em 1973 criou as Publicações Escorpião/Textos Exemplares. Barrote fazia a supervisão das
traduções e também indicava textos para edição. “Mas a grande maioria era eu
mesmo que selecionava”, afirma Abreu.
Os recursos investidos na editora eram de
Abreu. “Na verdade o investimento era quase nulo, porque os livros já saíam
quase todos vendidos”, diz ele.
Um dos maiores sucessos da editora foi o
livro O combate sexual da juventude,
de Wilhelm
Reich, publicado em 1972, que vendeu quase 30 mil
exemplares. “Quando eu resolvi editar este livro todo mundo disse que eu estava
louco, que eu seria preso, mas resolvi editar assim mesmo. Foi um sucesso,
vendeu uns 20 mil, 30 mil exemplares. Eu tirei os primeiros 5 mil e vendeu tudo
em 24 horas”, lembra Abreu.
“Com a Textos Marginais os problemas com a
censura e a PIDE/DGS foram poucos”, diz. Ele lembra que teve problemas em 1972,
quando uma nova Lei de Imprensa reforçou a exigência de registro na Secretaria
de Estado da Comunicação Social para se poder editar. “Como eu não estava
inscrito lá, eles fizeram um processo por conta do livro A medicina e a vida hospitalar na República Popular da China. Aí
fiquei praticamente proibido de editar, meu nome não podia aparecer nos
livros”.
Em 1973 Abreu estava em idade militar e foi
enviado para Angola, onde ficou 21 meses. “Com o meu histórico com a PIDE, fui
pra lá com uma espécie de ‘estatuto de revolucionário’, que eu nunca tive de
fato”, lembra. Mas mesmo na África Abreu conseguiu dar continuidade às edições,
inclusive realizando algumas revisões de textos que lhe eram enviados por
correio.
Quando deu-se o 25 de Abril, Abreu estava
em Angola, mas pouco tempo depois já havia retornado a Lisboa .
Depois do 25 de Abril os livros continuaram
vendendo bem, conta Abreu. Um indicador desses bons resultados é o fato de três títulos
da editora terem aparecido na secção “Os best-seller da quinzena” do jornal Expresso, em 1974 e 1975. O livro O combate sexual da juventude, de W.
Reich, apareceu em 5º lugar (24/5/1975), em 3º
(7/6/1975) e em 9º (21/6/1975). Já a obra de Paulo Freire, Uma educação para a liberdade, foi mencionada em
10º lugar em 25/1/1975. E A nossa arma é a greve, reunião de textos de Franz
Mehring, Rosa Luxemburgo e Emile Vandervelde, surgiu em
7º lugar em 21/6/1975[12].
Outros títulos
editados a partir de 1974 foram: Uma iniciação à
economia,
de Charles Rouge (1974); Teoria e
história do capitalismo monopolista, de Harry Magdoff, Paul Baran e Paul Sweezy
(1974); A aplicação da psicanálise à investigação
histórica, de Wilhelm Reich (1974); Progresso
social e liberdade, de Herbert Marcuse (1974); Viver em Moscovo, viver em Nova York, de K. S. Karol e Herman
Schreiber (1975); Inquérito operário e
luta política, com textos de K. Marx e Mao Tsé-tung (1975); Socialismo, casamento e família: a doutrina
socialista do casamento, de David Riazanov (1975); e As três fontes do marxismo: a obra histórica de Karl Marx, de Karl
Kautsky (1975).
Mas os novos tempos trouxeram mudanças para
o setor editorial:
As coisas mudaram radicalmente.
Antes do 25 de Abril o livro saía com o rótulo de proibido, então havia todo um
mercado paralelo, que se formou em função disso, as livrarias recebiam os
livros que sabiam que seriam proibidos e já tinham uma forma de os vender,
recebiam os livros e nem expunham, ficavam debaixo do balcão e havia os
clientes certos que iam lá e compravam. Eram tiragens de 3 mil, 4 mil
exemplares e vendia tudo. Normalmente uns 30% ou 40% da tiragem eram já destinados
para a apreensão, a gente já contava com aquilo. Com o 25 de Abril surgiram
dezenas de editoras, e naturalmente eu também perdi espaço, eu tive que me
afastar de algumas coisas e mudar o rumo.
Abreu lembra, com ironia, que “Com o 25 de
Abril todos se transformaram em revolucionários, até alguns que eram ligados ao
antigo regime foram parar no Partido Comunista”. Mas, depois de cerca de dois
anos em que a agitação política foi intensa e vendeu-se livros políticos como
nunca em Portugal – de abril de 1974 até o final de 1975 –, o mercado para este
tipo de livro começou a diminuir. “Depois, já em 1976-78, começou a haver uma
definição de mercado, porque o mercado era muito bagunçado. O mercado começou a
ser muito mais seletivo, ficaram alguns, a Afrontamento, a Centelha, o resto
caiu tudo”, diz Abreu, que completa: “O interesse pelo livro político caiu
muito. O interesse era motivado, em grande parte, pela repressão política”.
Já em 1975 Abreu partiu para uma nova
empreitada, criando a editora Rés em sociedade com Reinaldo Carvalho (ver item
sobre esta editora no Capítulo 11).
António
Abreu avalia da seguinte forma a atuação das editoras políticas em Portugal no
período que precede ao 25 de Abril e nos anos imediatamente seguintes ao fim da
ditadura:
Acho que as editoras que
publicaram livros políticos tiveram um papel importante na formação política,
porque não existia formação política em Portugal devido ao longo período da
ditadura. A maioria dessas pequenas editoras era ligada a algum movimento. Elas
não tinham uma visão comercial, eram idealistas que faziam aqueles livros.
Todos os títulos editados pela Textos
Marginais eram de autores estrangeiros, com exceção de uma única obra: Miséria de cinema, de António Faria,
publicado em maio de 1974. Os livros tinham tratamento editorial e gráfico
profissional, e a distribuição era feita pela Dinalivro.
A editora atuou até 1977, tendo publicado 28
títulos. O período de maior atuação foi entre 1972 e 1974, quando saíram 21
títulos. Em 1975 foram editados apenas quatro, em 1976 apenas um, e 1977 dois
títulos. Os três últimos títulos já saíram em edições feitas pela Dinalivro, a
quem Abreu havia vendido a Textos Marginais em fins de 1975.
Em alguns livros da Textos Marginais
aparece o seguinte crédito: “Edição: Henrique A. Carneiro”. Como esclareceram-me António Abreu, José de
Sousa Ribeiro[13], da editora Afrontamento, e João Barrote[14], este senhor era um dos proprietários da Gráfica Firmeza, do Porto,
onde foram impressos muitos livros de caráter político naqueles anos. O seu
nome aparecia para cumprir a exigência legal de que houvesse um editor
autorizado que fosse responsável pela publicação – e também para proteger os
reais editores de possíveis problemas com a polícia política. Mas de fato o
senhor Henrique A. Carneiro não era o editor daquelas obras, mas sim o
tipógrafo responsável por sua impressão. A menção de seu nome como responsável
pela edição ocorre em livros de muitas outras editoras do Porto (ver item sobre
a Editora Textos Políticos, neste capítulo).
(Extraído de: SILVA, Flamarion
Maués Pelúcio Silva. Livros que tomam
partido: a edição política em Portugal, 1968-80. Tese de doutorado em História, Universidade de São Paulo, 2013.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07112013-131459/en.php>.)
[1] Conforme lembrou João
Barrote em mensagem eletrônica enviada em 28/6/2011.
[2] DAVARA TORREGA, Francisco Javier. “La aventura informativa de Cuadernos
para el diálogo”. Estudios sobre el Mensaje Periodístico, nº
201, 2004, p. 201-220. Disponível em:
<http://revistas.ucm.es/index.php/ESMP/article/view/ESMP0404110201A/12595>.
Acesso em 26/10/2012.
[3] MORET, Tiempo de editores, op. cit., p. 296.
[4] Entrevista com António
Daniel Abreu, São Paulo, 23/8/2012. Todas as demais falas de Abreu provêm desta
entrevista.
[5] Entrevista com João
Barrote, freguesia de Arnoia, concelho de Celorico de Bastos, distrito de
Braga, 22/6/2011.
[6] CÉSAR, Felipa. “Notas
sobre o fac-símile da publicação Cadernos para o Diálogo 2”. In: CÉSAIRE, Aimé.
Discurso sobre o colonialismo. Edição
fac-similar. Berlin: Bom Dia, 2012.
[7] Ibidem.
[8] Relatório
9253 da DGS sobre o livro Discurso sobre
o colonialismo, datado de 11 de janeiro de 1972, assinado por Simão
Gonçalves. Reproduzido em CÉSAR, op. cit.
[9] Tal
afirmação aparece na contracapa do livro O
que é uma constituição política?, de Ferdinand Lassalle, que em 1976
inaugurou a nova série da coleção Cadernos Para o Diálogo, recriada por Abreu
na editora Nova Crítica (ver item sobre esta editora no Capítulo 11).
[10] Conforme lembrou João
Barrote em mensagem eletrônica enviada em 28/6/2011.
[11] Entrevista com António
Daniel Abreu, São Paulo, 23/8/2012. Todas as demais declarações de Abreu provêm
desta entrevista.
[12] “Os best-seller da
quinzena”. Secção do jornal Expresso,
1974 e 1975. Hemeroteca Municipal de
Lisboa.
[13] Entrevista com José de
Sousa Ribeiro, Porto, 24/3/2011.
[14] Entrevista com João
Barrote, Arnoia, 22/6/2011.
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