Foi com grande satisfação que soube de uma iniciativa que finalmente teve lugar. Infelizmente aconteceu agora e pelos piores motivos.
Estamos todos lembrados da LI original de finais de 90 e começos de 2000. Infelizmente, nessa altura, a incapacidade de os independentes se unirem (um problema muito português) foi gritante e triste para quem via do outro lado da barricada.
Insisti nessa ideia em três Encontros Livreiros na Culsete. Referi o exemplo da Feria Chilena del Libro que se tornou a cadeia de livrarias mais pujante e de maior dimensão no país contra os gigantes espanhóis que o invadiam.
1. A situação actual:
A cadeia do livro em Portugal entrou em estagnação quase total. Há
várias iniciativas para condicionar os leitores para a compra online mas
nunca houve grande adesão a este canal - o leitor português é, por
definição, avesso às novas tecnologias. Claro que as vendas online
subiram mas as vendas online não representam sequer 5% do total de
vendas da maior parte das editoras e livrarias. Que tenham subido dois
ou três pontos percentuais será, talvez, já muito exagerado.
Assim as editoras suspenderam a produção e as livrarias fecharam portas e a maior parte das empresas encontra-se em lay off.
A situação é muito recente, muito incerta e demasiado complexa para ter gerado mais do que um começo de discussão preocupada.
O
problema das sociedades modernas (e por reflexo das economias modernas)
é que não estão preparadas para lidar com incertezas. As incertezs com
que a área do livro sempre viveu, como as das sociedades modernas, são
incertezas controladas. Sabemos as variantes e os limites dessas
incertezas, conseguimos prever os melhores cenários e os worst case scenarios. Com a pandemia tudo é uma incógnita total.
Em
Portugal e no mundo as economias do livro estão presas aos números de
leitores que são sempre residuais dentro do grande cenário económico.
Claro que a dimensão dos países dita a outra questão: Portugal é um país
pequeno com um número ínfimo de leitores relativamente à percentagem de
população. As estatísticas que existem são falseadas ou muito pouco
rigorosas (a última indicava que 47% da população lia livros e que os
restantes 53% só não lia por falta de tempo... a coragem de ter lançado
uma estatística destas roça níveis de ridículo indizíveis). Na realidade
a experiência diz aos editores portugueses que, com sorte, teremos 5% da
população a ler livros. Há, portanto, excesso de livros produzidos para a procura
existente.
Como
tal a economia do livro em Portugal é, no mínimo, periclitante.
Livrarias e editoras de todas as dimensões dificilmente vão aguentar os
resultados da estagnação comercial e do período de recessão que
necessariamente se lhe vai seguir sem apoios estruturais. O mesmo,
contudo, acontece com a maior parte dos sectores de actividade. E o
mesmo acontece com a maior parte dos sectores de actividade em todos os
países afectados.
Com
uma pandemia a questão macro económica deixa de ser uma preocupação
centrada nos Estados e tem de passar para uma discussão supra-nacional.
Os governos dos vários países afectados não têm condições económicas
para resolverem por si a situação e os seus efeitos. É simplesmente
impossível. As medidas que venham a ser tomadas para "segurar" sectores
da economia vão ser escolhas difíceis para os governos e as indústriais
culturais serão - como sempre em tempos de crise - as que mais irão
sofrer porque são sempre consideradas não-essenciais. Quem tiver ilusões
aqui, desengane-se. As soluções e apoios para as indústrias culturais
serão das que mais tardarão para um sector que, por já viver
habitualmente de apoios e pouco ter desenvolvido economias próprias,
será dos que mais rapidamente passará dificuldades.
Acredito
pessoalmente que 30 a 60% das empresas ligadas às indústriais culturais
vão insolver. Sobreviverão os projectos mais economicamente bem
pensados e estruturados, desaparecerão projectos quixotescos alicerçados
sobretudo em boa vontade mas sem estratégia económica - algo habitual
nas indústrias culturais.
Se e quando chegarem apoios, será tarde demais para muitos até porque a restante crise que afectará o país e o mundo ditará uma recessão com efeitos na compra de bens.
2. O aparecimento da RELI
A RELI parece ser finalmente a concretização de uma ideia antiga que
teve vários falsos arranques nas últimas 3 décadas em Portugal. Foi
finalmente possível por via de uma combinação de factores negativos entre os
quais o medo, a incerteza e o facto de haver tempo para os livreiros
independentes finalmente poderem parar - a maior parte das livrarias
independentes em Portugal tem 0 a 3 funaionários para além dos donos das
livrarias que também geralmente lá trabalham.
A
possibilidade de concretização da ideia prende-se sobretudo com um
conjunto de projectos livreiros criados nas últimas duas décadas e que
aliaram à simples criação do negócio uma consciência da actividade
dentro do plano económico. Há livreiros, finalmente, que têm
preocupações económicas e que pensam os seus projectos dentro dessa
realidade. Desde o 25 de Abril de 74, em Portugal abriam e
fechavam regularmente livrarias que tinham apenas como base "boas
intenções".
Foi
a situação actual e essa maior sensibilidade económica que levou os
livreiros portugueses a contrariarem uma ancestral aversão ao
associativismo. Essa aversão é fundamentalmente cultural e está ligada
ao medo da evolução e inovação bem como a uma tradicional incapacidade
de dialogar.
A
realidade, contudo, mudou: há livreiros que estão dispostos a fazer
mais sacrfícios do que outros para obter resultados que vão ser
proveitosos para todos (ao contrário do que aconteceu nos tempos da LI). E há livreiros que têm ao seu alcance conhecimentos
para pensar no negócio como um negócio e não como ideia ou mero
mecanismo de sobrevivência.
3. A Carta Aberta da RELI
O tom belicista, pessoalmente, incomodou-me - acho-o desnecessário e não acredito que reflicta o que muitos livreiros acham - ainda assim percebo que talvez tenha sido usado mais para efeitos internos de criação de uma união do que para quaisquer outros.
Pondo essa questão de somenos de lado analiso os pontos indicados:
1.º Garantia da extensão das medidas governamentais às livrarias independentes
Extensão
das medidas de apoio à tesouraria que vierem a ser aprovadas pelo
Governo ao comércio em geral e às livrarias independentes em particular,
de modo a garantir que a banca não exclui o pequeno comércio das
candidaturas às linhas de financiamento.
Um objectivo evidente e consciente. A união ajudará certamente a que o pedido ganhe consistência. Infelizmente, contudo, temo, pelos motivos que invoquei no ponto 1. desta minha carta, que possa não chegar.
2.º Compras institucionais
Reforço dos
programas de aquisição de livros e revistas para as bibliotecas
públicas, escolares, ou municipais mesmo em situações de encerramento
temporário forçado — através de consultas preferenciais às livrarias
independentes, de acordo com a sua proximidade e não de acordo com o
preço, que deveria ser o do PVP dos livros ou fixado num desconto mínimo
(máximo de 10%) de modo a facilitar e não impedir a participação destes
livreiros independentes nessas consultas públicas. Todos sabemos que
não é possível exigir dos livreiros descontos que são muitas vezes
iguais ou superiores aos que as condições comerciais praticadas pelas
grandes editoras nos permitem.
Objectivo bonito mas irrealista por vários motivos: a) viola a
legislação da concorrência; b) em termos realistas as livrarias
independentes não têm meios nem conhecimentos suficientes para
satisfazer os requisitos burocráticos inerentes à participação em
processos de aquisição estatais que são tão complexos que quase precisam
de um economista e um advogado na sua concretização; c) nos próximos
anos as bibliotecas e compras em geral de organismos estatais (que já
eram baixíssimas) vão diminuir.
3.º Arrendamentos e despejos
Apoios
financeiros a fundo perdido destinados ao reforço de tesouraria ou ao
pagamento das rendas, em articulação com as medidas que vierem a ser
aprovadas para o comércio em geral para a restauração e hotelaria, para
as micro e pequenas empresas, tendo em consideração que a especulação
imobiliária, principalmente nas grandes cidades, foi a primeira
responsável pelo encerramento de muitas livrarias independentes e do
comércio de proximidade em geral. Nos tempos que virão, esta é uma
cautela que os governos e as autarquias têm que assegurar.
Esta é uma medida realista que deverá passar pelo reconhecimento de um
estatuto de utilidade cultural que crie regimes de excepção.
4.º Seguro de salários e rendimentos de sócios-gerentes
Seguros
de salários, ou equivalente, de modo a garantir um rendimento mínimo a
todos e enquanto os efeitos da epidemia durarem. Em caso de layoff ou situação equivalente os rendimentos mínimos devem contemplar,
obrigatoriamente, os sócios-gerentes das micro e pequenas empresas.
Muitas das vezes são esses sócios-gerentes os únicos trabalhadores
efectivos nos estabelecimentos, e a sua sobrevivência depende
exclusivamente do exercício dessa actividade;
Como para milhares de pequenos negócios (a grande maior parte do nosso tecido comercial e industrial de micro e pequenas empresas justifica-o) faz todo o sentido.
5.º Apoio directo à RELI — Rede de Livrarias Independentes
Apoio à constituição da Associação RELI, nomeadamente para construção de um site com venda online e georreferenciação das livrarias aderentes à rede, o
qual constituirá o embrião de uma central de compras e de distribuição.
Outros apoios serão apresentados de acordo com o evoluir da situação de
calamidade pública.
Este pedido está mal orientado: viola as regras básicas da
concorrência. O que a RELI pede nunca poderia ser concedido em regime de exclusividade e o Estado não sustentará empresas. Não é possível pura e simplesmente. O que a RELI deveria ter pedido era apoio estatal
específico para ajuda na candidatura a fundos (europeus e outros) que permitissem realizar
este projecto. Erro de sintaxe ideológica que poderá custar caro. E
falta de visão: este deveria ser o foco principal da acção da RELI porque
é o único que assegura o futuro.
6.º Cumprimento da Lei do Preço Fixo, mesmo em tempos de emergência
Exigir
o cumprimento da Lei do Preço Fixo, sem subterfúgios nem atropelos,
quer por parte de algumas grandes cadeias de livrarias online — que praticam descontos acima dos permitidos pela lei —, quer pelas próprias editoras — que concorrem com os sites das livrarias através da venda a retalho nos seus próprios sites.
Mais um pedido mais enunciado. O ponto que deveria ser fundamental aqui era um pedido urgente de revisão da lei para que as multas pela violação da lei do preço fixo fossem efectivamente proibitivas para os prevaricadores (por exemplo que quem violasse a lei do preço fixo e fosse apanhado ficasse proibido de vender livros durante um período de vários meses). Neste ponto, como no anterior, a RELI não pode ficar à espera que o Estado encontre as soluções (nem deveriam querê-lo!). Estas têm de partir de propostas suas.
Aqui quero, contudo, relembrar que sou pessoalmente contra a lei do
preço fixo por uma questão de observação fria das implicações e efeitos
da sua aplicação ao longo de várias décadas no nosso país: nunca funcionou no objectivo que se propôs de defender pequenos livreiros, editores e o leitor. Se alguma
coisa deveria acontecer era uma luta e um pedido de regulamentação legal
do desconto comercial. Esse seria o único mecanismo que efectivamente
protegeria pequenos livreiros, editores e os leitores. E sê-lo-ia porque
era o único mecanismo que abriria portas a um liberalismo comercial
definido dentro de regras comuns, o resto ficaria a cargo da imaginação e
capacidade e risco de cada agente do livro - e os pequenos livreiros aí
tem uma vantagem na agilidade e criatividade que as grandes cadeiras
não terão. Tenho-o defendido ao longo dos anos e a minha opinião encontra-se expressa e declarada em diversos textos espalhados pela internet e não só.
Quanto às medidas estruturais que propomos
para discussão, consideramos que, a seu tempo, teremos obrigatoriamente
que as discutir franca e abertamente no sentido de evitarmos, de vez,
alguns dos procedimentos que impedem as boas práticas da concorrência,
nomeadamente:
a) Feiras do Livro: facilitar a participação dos livreiros independentes, fiscalizar a aplicação de descontos ilegais.
A primeira parte da reclamação acima soa-me a violação da lei da
concorrência e acima de tudo é fruto de uma palermice histórica que
consiste no facto (historicamente justificado mas hodiernamente
irrealista) de as livrarias e editoras estarem representadas na mesma
associação profissional.
b) Fiscalização da actividade comercial de venda a
retalho de livros, através do IGAC e da ASAE: prática de descontos
pontuais acima do permitido e de promoções de duração superior ao
estipulado na Lei do Preço Fixo, quer em algumas redes de livrarias
(físicas ou online) quer em outros pontos de venda de livros.
Sobre isto já me pronunciei atrás.
c) Livro Escolar: a venda ao público feita directamente pelas editoras de livro escolar, os vouchers do Ministério da Educação que deveria ter sido uma medida para apoiar a rede livreira e afinal não foi.
Este ponto envolve um sistema há muito corrompido e que, por sua vez, envolve verbas
monstruosas. É uma luta que me parece há muito perdida salvo num
processo judicial devidamente fundamentado. É, creio, uma luta muito
para lá da capacidade actual e imediatamente futura da RELI. O que, note-se, não lhe retira validade e justa causa.
d) Instalação de novas livrarias, e das que vierem
eventualmente a ser despejadas quando terminar o estado de emergência e
de calamidade pública, em edifícios que sejam propriedade do Estado, das
Autarquias e de Fundações ou Instituições privadas dependentes do OE.
Ideia curiosa mas que teria de ser melhor estruturada e deveria passar
por um plano abrangente das RELI para assumirem, por exemplo, as
livrarias da rede de Museus públicos. Algo que só faria sentido a partir
do momento em que a RELI conseguisse concretizar a sua central de
compras e um conjunto de mecanismos centralizados que a mim me parecem
dever ser o foco principal mais urgente e importante da RELI. Fora isso a questão da preferência na ocupação desses espaços pode ser nova violação das leis ca concorrência...
4. Em súmula:
Encontro na carta da RELI várias boas ideias mas muitas outras que me parecem uma vontade de encaminhar as livrarias independentes para um estado de livrarias dependentes como já acontece em demasiados sectores da cultura em Portugal. Isso é preocupante porque a mais-valia de uma livraria independente é ser... independente.
Retomando o ponto fundamental e na perspectiva do editor chamo a atenção para que
estruturar planos e propostas tem de ser uma prioridade imediata da RELI
porque assim que actividade retome os livreiros não terão tempo - como
não tinham antes. Chamo também a atenção para uma dificuldade que
antecipo desde já e que tem de passar por um código de princípios comum
às RELI para justificarem o posicionamento de mercado que pretendem pois
alguns dos membros da RELI têm históricos de incumprimento de
pagamentos tremendos (felizmente são poucos no total dos membros)*. A
RELI só será levada a sério no mercado se criar mecanismos e princípios
comuns e os cumprir. Sem isso será um amálgama de intenções mas não
passará daí.
Não
é isso que desejo da RELI na qual vários membros são clientes da minha
editora e de cujos alguns membros sou eu pessoalmente cliente.
Se estas notas puderem ser úteis e ajudar, ficarei contente. Espero que a RELI se torne uma realidade pujante e poderosa mas não a quero ver dependente.
Bem-hajam e contem comigo no que me for possível,
Hugo Xavier
Editor
* Quero aqui clarificar a questão que aponto: há um número, felizmente reduzido, de entre os livreiros que integram a lista de membros da RELI que têm um histórico - muitas vezes orgulhosamente assumido - de incumprimentos em termos de prazos de pagamento. Há também entre os membros da Rede de Livreiros Independentes livreiros que não são independentes pois contam com apoios estruturais camarários e outros e vivem a suas expensas - curiosamente parece coincidir nesses a maior percentagem de incumprimentos em prazos de pagamento (percebem a minha preocupação em que a RELI não passe a viver dependente?).
Por último uma questão que me deixa sempre inseguro: o que é uma livraria independente? A Bertrand não é uma cadeia de livrarias independente, a Joaquim Machado S.A. não o é? O conceito de independência é-vos perigoso. Uma rede de pequenos livreiros é algo que mais sentido mas isto, claro, são questões de pormenor...
Achei muito interessante atualmente esta sua postagens.
ResponderEliminarLoud Coringa Abraços ;) !