Não me passaria nunca pela cabeça apresentar senão a minha maneira de ver e fazer uma avaliação de original (ou obra em análise para possível publicação – entenda-se uma obra estrangeira a traduzir ou uma reedição de uma obra anteriormente disponível no nosso mercado, etc). Cada profissional, nas mais diversas áreas, entende e cumpre cada função de modo próprio e, numa tarefa como esta que envolve pensamento estratégico, ainda mais a perspectiva é, como deve ser, individual. Não pretendo de forma alguma apresentar qualquer tipo de abordagem normativa. Há editores que avaliam obras pela leitura da primeira linha e há outros que só o fazem analisando a a obra inteira de um autor minuciosamente. Os métodos diferem e nenhum deles garante o sucesso, da mesma forma como, em princípio, nenhum dita o seu fracasso.
Como em todas as tarefas que compõem o trabalho das ditas indústrias criativas, há sempre uma grande margem deixada ao instinto, instinto esse que pode ser mais ou menos sustentado pelas mais diversas experiências.
Acredito que cada um desenvolve o método que o deixa mais confortável perante a sua decisão. Da mesma forma como acredito que há quem tenha talento e quem não o tenha, como em tudo na vida.
O método de que falo a seguir é o que cumpro já há uns anos e vale o que vale. É o meu, tem sofrido alterações (espero que evoluções), tem aprendido e crescido.
1 – PRIMEIRO CONTACTO, APRESENTAÇÃO E ENVIO
Já o disse nas páginas deste blogue que acho da maior importância que os autores proponentes (e o mesmo vale para um agente de direitos) oriente a sua proposta em função da editora-alvo que selecciona.
Uma editora nacional com um pouco de nome recebe dezenas de originais por semana. Na Cavalo de ferro, editora da qual fui sócio fundador e editor e uma casa especializada em literatura em tradução, apesar de durante uma temporada termos tido um aviso bem claro no nosso site informando que não publicávamos autores de língua portuguesa, recebíamos dezenas de originais por semana. Isto na maior parte dos casos é um desperdício de dinheiro por parte dos candidatos a autores. Da mesma forma os grandes grupos editoriais recebem dezenas de originais de poesia por semana. Ora sabemos que a sua vocação editorial não é esta. E as pequenas editoras de nicho e grande grau de especialização recebem propostas de romances comerciais ou livros sobre dietas…
Um editor que recebe um original mal orientado percebe de imediato que, antes de qualquer outra coisa, está perante um autor que lê pouco (grande mal do nosso país de poetas onde muitos escrevem e poucos lêem). Isto desde logo é algo desmotivante. Um autor que seja um leitor saberá certamente quais as editoras que publicam o tipo de livros que ele escreveu. E sabe-o porque os leitores funcionam por afinidade. Outro problema com o facto de os autores proponentes lerem pouco revela-se muitas vezes pela noção claramente transmitida pelo texto relativa aos modelos ultrapassados (exemplificando: a grande maior parte dos originais de poesia ficou-se pela influência da Florbela Espanca como se nada mais tivesse surgido na literatura nacional e internacional desde essa altura). Claro que há sempre uma possibilidade muito reduzida de estarmos perante o génio: alguém que sem conhecimentos, sem uma cultura literária, consiga, ainda assim, apresentar uma obra magnífica. Essa é a excepção que confirma a regra. Nunca encontrei um caso assim.
Passando à frente e abordando agora a questão do primeiro contacto em termos de apresentação.
Convirá deixar claro que, nos tempos que correm e por motivos já atrás mencionados e debatidos neste blogue, os ritmos de trabalho na edição hodierna são exigentíssimos. Assim e por muito que eu possa perceber a importância que um autor atribui a vir pessoalmente apresentar a obra ao editor, essa abordagem resulta geralmente mal. O editor tem muito pouco tempo e provavelmente nem vai conseguir estar muito concentrado naquilo que está a ouvir. Acresce a isso que um autor com grande capacidade de comunicação não garante, de forma alguma, um autor com potencial editorial ou literário.
A edição em Portugal vive um momento de claro excesso de publicações pelo que a triagem tem de ser minuciosa. Isto influi sobre a forma de estar/ser de um editor, sobre o tempo que tem disponível (e que é muito pouco) e sobre a sua capacidade de atenção.
Há editoras que solicitam o envio de originais por e-mail. Mais uma vez o digo: cada um tem o seu método, mas não estou a ver um editor a analisar as dezenas de originais no seu monitor de computador ou a gastar dinheiro a imprimir os mesmos.
A forma tradicional, o envio do texto por correio, continua a ser a melhor. Eu continuo a gostar de ler em papel e dá-me muito mais jeito para escrever notas nas margens ou verso da folha.
Nota: autores, considerem que quando enviam um original para uma editora, dificilmente o verão ser devolvido. Como vos disse, uma editora recebe centenas de originais por mês. Os custos de devolução ou sequer a existência de um espaço físico onde possam ser guardados de forma organizada são geralmente incomportáveis com a realidade das editoras.
Quando um autor me contacta a perguntar qual a melhor forma de apresentar um original, peço o seu envio por correio. Costumo também pedir para não me enviarem o documento todo. Apenas umas 30 a 50 páginas, precedidas de uma sinopse e de um CV do autor.
Faço-o por vários motivos:
- A sinopse permite-me aferir da adequação da obra ao catálogo da editora onde trabalho. Nessa sinopse deve ser incluído igualmente o número total de páginas da obra.
- O facto de receber entre 30 a 50 páginas passa pelo facto de eu não acreditar que uma obra que não consiga prender/interessar ao leitor nas primeiras 30 a 50 páginas possa funcionar comercialmente. Mais adiante explicarei o que entendo por este “funcionar comercialmente”.
- O CV do autor dá-me pistas sobre a formação, influências e capacidades do autor. Não é, de forma alguma, um elemento decisivo ou decisor. É um instrumento de apoio.
Pequenas chamadas de atenção:
- Por muito que seja boa educação, evitem as cartas manuscritas de apresentação. Nós editores temos geralmente a vista cansada de ler.
- Não enviem textos impressos com corpo de letra 10 ou menor, sem linhas de separação e com uma mancha de texto visualmente agressiva.
- Não enviem textos impressos com tipos de letra originais e divertidos, Times New Roman, Garamond, Windsor, letras clássicas e de fácil leitura. Sobretudo nunca enviem textos impressos em Comic Sans.
- Se as obras incluem ilustrações, enviem um ou dois exemplos. Se o editor quiser ver mais, pedirá. Tenham a consciência que a impressão a cores é bastante dispendiosa e tentem perceber que tipo de ilustrações se adequa ao vosso tipo de livro. Vão a uma livraria e vejam edições similares.
- Não escrevam na vossa apresentação ou sinopse que acham que a vossa obra tem grande potencial comercial. Essa é uma decisão do editor. Esta recomendação funciona por extensão para as vossas opiniões sobre a vossa própria obra. Eu pessoalmente também não gosto de receber a informação de que a obra foi lida pelo professor X ou pelo Autor Y que a considerou muito interessante mas sei que há editores que prezam essas opiniões.
- Evitem erros ortográficos e de sintaxe pelo menos na sinopse e apresentação (mais ainda no CV). Tenham cuidado com a apresentação. Um original enviado a uma editora deve ser apresentado com os cuidados que antigamente se dedicavam à
toilette de Domingo. (Fica aqui uma nota muito clara a dizer que o mesmo vale para quem faz testes de tradução, envia CVs para o lugar de revisor ou outro – sim, esta nota é muito necessária, infelizmente).
2 – CRITÉRIOS, MÉTODOS DE ANÁLISE, CONSIDERAÇÕES ESTRATÉGICAS
Há uns anos, ou no Blogtailors ou na revista dos Booktailors, escrevi um texto sobre o que entendia serem os requisitos de um editor moderno. Ainda não mudei de opinião. O editor moderno deve, para além da sua função na máquina editorial, ser um profundo conhecedor dos processos a montante e a jusante. Digam-lhe ou não directamente respeito. O editor moderno tem de ser pessoa de vários ofícios: tem de ser editor, em primeiro lugar, mas deve ser crítico, analista de mercado, psicólogo, diplomata, comercial,
marketeer, e muitas vezes financeiro. Isso vai sendo cada vez mais necessário, sobretudo no ambiente das grandes empresas em que as decisões estratégias e até editoriais são mais e mais amiúde tomadas por quem nada sabe do público final ou de livros.
Recebido um original e decidida a sua análise (há sinopses ou apresentações de obras que evidenciam de imediato a sua desadequação), costumo fazer uma leitura simples da obra. O editor deve ser capaz de “esvaziar“ a sua cabeça e fazer uma leitura como um leitor médio. O editor tem sempre de posicionar a sua leitura ao nível da dos leitores.
Dessa leitura deve em primeiro lugar ser aferida a qualidade da obra. A qualidade da obra é definida por um conjunto de atributos: qualidade da escrita, originalidade do tema, da abordagem e do estilo bem como o resultado final. Muitas vezes uma obra não consegue uma avaliação boa em qualquer destes atributos mas no compto geral consegue ser um todo harmónico, coisa que muitas obras que conseguem ser triunfantes em vários dos mesmos atributos nunca chegam a conseguir.
A análise acima é a mais pessoal e cada editor terá metas e notas diferentes a dar consoante o seu perfil de leitor e consoante o tipo de obra em causa. Dessa análise, determinará também o editor, a necessidade de alterações, correcções, adendas ou eliminações que considera necessárias.
Uma segunda análise deve ser feita em seguida e passa pelo conhecimento que o editor tem de ter do mercado editorial e em particular do segmento editorial no qual se insere a obra em análise.
Essa análise passa por perceber em primeiro lugar o seu funcionamento comercial. Explico agora o que quero dizer com isto. Para mim saber se uma obra funciona comercialmente significa saber se dentro das tipologias nas quais insiro a obra e das expectativas que cada tipologia/segmento determina como expectativas médias, a obra faz ou não sentido. Por exemplo: se estou perante um romance “cor-de-rosa” eu preciso de determinar se este está à altura dos rivais no mercado; se estou confrontado com um livro cuja publicação se justifica pelo prestígio que traz a um catálogo ou editora, se ainda assim ele cumpre os requisitos expectáveis desse tipo de livros. Ou seja, dizer que um livro é ou não comercialmente funcional não significa que o editor obrigue a obra a ser rentável na sua apreciação mas a saber que pode ter nas mãos um livro excelente mas tão hermético que apenas 50 pessoas o entenderiam.
Por outro lado é necessário um conhecimento grande do mercado. É preciso saber bem qual o espaço que o mercado dá a determinadas obras. Erro grosseiro de muitas editoras tem sido a edição sistemática de livros de determinada tipologia/género quando há livros muito semelhantes no mercado e incapacidade dos compradores em esgotá-lo. O editor de um livro que se destine a um destes espaços já sobre-lotados tem de estar certo das mais-valias que a obra tem e que a podem destacar acima das demais.
A partir daí a decisão final que deveria caber ao editor mas é cada vez mais tomada por gestores, é definir dentro das necessidades da empresa a possibilidade de encaixe do título aprovado.
Pelo meio disto, o editor teve também de ponderar a lógica do enquadramento de determinada obra numa linha, colecção ou chancela: a obra pode ser excelente mas não fazer sentido numa determinada linha editorial. Caso se determine a sua saída, o editor deverá meditar bem o entrosamento da obra com os restantes títulos a sair na mesma linha/chancela/colecção para que não haja choques ou canibalismo comercial. Deverá conciliar os factores atrás determinados com o momento de publicação ao longo do ano, conhecendo como deve conhecer, os momentos de oscilação do mercado, os momentos ideais para apresentar novos autores, para obter as atenções da crítica/imprensa especializada, para propiciar determinados objectivos comerciais, etc.
As condicionantes a todo este processo variam imenso de editora para editora e podem passar pela disponibilidade financeira, as determinações do mercado, as decisões administrativas e estratégicas que podem privilegiar uma colecção/linha em detrimento doutra, a prevalência da importância de um título sobre outros por questões do momento, etc, etc, etc. Claro que a generalidade destas condicionantes é a responsável por boa parte do caos reinante na lógica de edição de linhas, colecções e catálogos. Caberá ao editor directamente ou em discussão com a Administração da sua empresa, tentar minorar os danos causados pelas condicionantes que determinam alterações ao programa determinado pelo editor.
Pensados todos estes pontos, pelo menos numa primeira abordagem, o editor deve, a partir desse momento, comunicá-los, discuti-los e explicá-los com e ao autor depois de o informar do interesse em fechar contrato e publicar aquela obra. E aqui entramos no território, amplamente discutido atrás neste blogue, da relação Autor/editor.
Hugo Xavier