Estimado Jorge Barreto Xavier,
Dirijo-me a si através desta carta aberta. Faço-o porque dos dois anos que trabalhámos juntos na Câmara Municipal de Oeiras (enquanto Vereador do Pelouro da Cultura e enquanto Chefe da Divisão de Bibliotecas) me ficou a ideia que é conhecedor e defensor do inestimável papel social desempenhado pelas bibliotecas públicas.
Acredito que o sucesso das bibliotecas públicas se deve à confluência de três fatores determinantes: vontade politica (materializada na aposta estratégica, por parte dos autarcas, no desenvolvimento sustentável dos equipamentos e dos serviços); competência técnica (materializada na existência de equipas técnicas especializadas, com elevados níveis de empenho e de desempenho); recursos estratégicos (materializada em edifícios funcionalmente adequados, fundos documentais diversificados, meios tecnológicos atualizados, equipas técnicas especializadas, recursos financeiros adequados). Em Oeiras, durante alguns anos, esses fatores confluíram de modo a tornar as Bibliotecas Municipais de Oeiras numa referência a nível nacional. Viveu-se um período áureo. Em muitas bibliotecas municipais da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP) aconteceu o mesmo.
Todavia, depois de 25 anos de implementação em todo o território nacional (são cerca de 200 as novas bibliotecas municipais que já foram inauguradas), a RNBP encontra-se perante um paradoxo: nunca como hoje, foi tão necessário e urgente transformar as bibliotecas públicas portuguesas adequando-as as mudanças sociais ocorridas; nunca, como hoje, houve tanta dificuldade em mobilizar a vontade política e os recursos estratégicos para o fazer. A urgência de transformar as bibliotecas públicas portuguesas surge como resposta às rápidas, profundas e irreversíveis, mudanças sociais ocorridas nos últimos anos (com a emergência da internet e dos novos media); a dificuldade em mobilizar a vontade política e os recursos estratégicos para a transformação decorre do impacto da crise internacional em que estamos mergulhados.
Perante este paradoxo, resta-nos tão-somente dois caminhos: transformar ou desaparecer. O fator decisivo que ditará o futuro das bibliotecas públicas portuguesas tem a ver com o seu efetivo impacto social. Das duas, uma: ou as bibliotecas públicas continuarão a acrescentar valor social e sobreviverão, ou as bibliotecas públicas deixaram de acrescentar valor social e desaparecerão. O seu desaparecimento não vai ser um processo imediato e evidente mas será sim um processo de lenta decadência. Com o desinvestimento nos recursos estratégicos e consequente incapacidade de dar resposta às mudanças sociais, as bibliotecas públicas tornar-se-ão em instituições socialmente obsoletas e irrelevantes.
Pessoalmente acredito que temos todas as condições para transformar as bibliotecas públicas portuguesas. Mas isso implica definir claramente qual o caminho que queremos trilhar nos próximos anos. A vontade política será determinante no desenvolvimento desse processo de transformação. E é neste contexto que deixo aqui as minhas sugestões para si, enquanto responsável governamental pela área da cultura. Passo a enunciá-las:
1. Realizar um diagnóstico da situação da RNBP – Este diagnóstico é fundamental
para conhecer a situação atual das bibliotecas municipais que integram a RNBP,
e, consequentemente, estabelecer uma estratégia de desenvolvimento sustentável
para os próximos anos. Para além da realização de um inquérito extensivo a
todas as bibliotecas, deverão ser também realizados estudos de caso e
entrevistas com os atores-chave da RNBP. Acima de tudo há que recolher dados quantitativos e qualitativos dentro de uma matriz previamente definida, estabelecer um quadro de referência nacional e mapear as diversas realidades regionais e locais. Preferencialmente este diagnóstico deverá ser efetuado por uma entidade independente, competente e experiente. Sugiro que essa entidade seja o ISCTE, pelo histórico que esta instituição académica tem na realização deste tipo de estudos na área das
bibliotecas.
2. Formar um Grupo de Trabalho RNBP 2020 – À semelhança do que aconteceu no passado (1986 e 1996) é fundamental criar um Grupo de Trabalho que, de uma forma sistemática, apresente um conjunto de propostas para o estabelecimento de uma estratégia, de medidas e de ações estruturantes, para o desenvolvimento sustentável para a RNBP no horizonte temporal de 2020. Esse GT deverá integrar um conjunto de profissionais que, com o seu conhecimento e sua experiência, possam pensar prospectivamente a RNBP. O processo reflexão deve também ter uma componente de debate alargado com todos os profissionais da área (via Fórum das Bibliotecas Públicas). O resultado desse trabalho deve ser consubstanciado através da
definição de Linhas de Orientação para a RNBP. Esse documento deve ter um carácter orientador e não vinculador, todavia a sua aplicação deve ser incentivada pelo Estado.
3. Criar um Fórum das Bibliotecas Públicas – Este Fórum será um espaço de participação alargada a todos os profissionais da área das bibliotecas públicas portuguesas. Tendo o carácter de um espaço de reflexão e de debate permanentes e em aberto, este fórum será materializado de duas maneiras: fórum presencial (reuniões mensais com duração de um dia), onde serão abordados circunstanciadamente e em profundidade temas atuais (formas de financiamento, serviços inovadores, atualização profissional, modelos de gestão, ferramentas do marketing, integração dos ebooks, etc.); fórum virtual (suportado por um site com ligação às redes sociais), esta componente do fórum permite que a reflexão e o debate
sejam ainda mais continuados, alargados e participados. Do Fórum surgirão uma série de recursos e documentos que irão engrossar um corpus técnico para a mobilização e atualização dos profissionais (vídeos, recomendações, tutoriais, etc.).
4. Definir Linhas de Orientação para a RNBP – Com o Programa da RNBP foi estabelecido um modelo para a criação e organização de novas bibliotecas municipais. Esse modelo definia claramente (em função da população servida): filosofia de organização e funcionamento, áreas dos edifícios das bibliotecas, fundos documentais mínimos, infraestrutura tecnológica básica, quadro de pessoal necessário. Ficou por definir no Programa da RNBP um modelo para o funcionamento e gestão das novas bibliotecas municipais. Esse modelo deverá definir claramente (em função nas novas exigências sociais): portfolio de serviços mínimos, métodos de envolvimento das comunidades, métodos de gestão inovadores, fontes de financiamento adequadas, perfil de competências dos profissionais, estratégias de funcionamento em rede. Estas orientações devem ser operacionalizadas por programas governamentais que incentivem a sua aplicação e prémios que reconheçam os resultados alcançados.
5. Criar um programa de formação avançada para bibliotecários – Os bibliotecários são os agentes da mudança e da inovação tão necessária à transformação das bibliotecas públicas portuguesas. Atualizar os conhecimentos e as competências técnicas dos bibliotecários que já trabalham na RNBP é uma tarefa urgente e prioritária. O enfoque deste programa deve ser colocado nas seguintes temáticas: métodos de gestão para a qualidade e para a inovação, liderança de equipas de trabalho e de projetos inovadores, desenvolvimento de serviços inovadores de base tecnológica, métodos de envolvimento das comunidades locais na gestão. Financiado pelo Estado, sujeito a um rigoroso processo de candidaturas, este
programa deve ser desenvolvido em estrita colaboração com a BAD (pela sua longa experiência de formação profissional especializada). Acima de tudo este programa deve servir para criar uma postura resiliente, proactiva e inovadora, por parte dos bibliotecários da RNBP.
6. Criar um programa de inovação para a RNBP – O desenvolvimento sustentável das bibliotecas públicas portuguesas depende, em grande medida, da sua capacidade para respostar de forma rápida e eficiente aos constantes desafios que as rápidas e profundas mudanças sociais implicam. A inovação é pois uma estratégia determinante não somente para melhorar a performance das bibliotecas públicas mas essencialmente para garantir o seu impacto social. No entanto, a inovação não deve ter a novidade tecnológica por motivação e justificação. Inovar deve significar, antes de mais, tornar as bibliotecas públicas mais adequadas às comunidades que servem. Assim sendo, grande parte das inovações serão de ordem metodológica, levando a novas formas de prestar serviços, de envolver as comunidades, de promover a literacia, de gerar recursos, de organizar espaços, de motivar equipas. O modelo a aplicar pode ser idêntico ao utilizado com grande sucesso na Rede Internacional de Bibliotecas Públicas (financiada pela Fundação Bertelsmann). Fase 1 – desenvolvimento de um novo conceito, serviço ou metodologia; Fase 2 – aplicação num conjunto de bibliotecas públicas de teste; Fase 3 – monitorização e avaliação dos resultados alcançados; Fase 4 – validação do novo conceito, serviço ou metodologia; Fase 5 – disseminação alargada dos resultados alcançados.
7. Criar um prémio de boas práticas na RNBP – Dar a conhecer de forma sistemática e alargada muito do trabalho anónimo mas altamente meritório que já é realizado pelas bibliotecas municipais que integram a RNBP é o grande objetivo deste programa. Passando por um processo de avaliação de candidaturas (por um júri independente) as boas práticas são avaliadas, validades e premiadas. O prémio deve ter duas componentes: reconhecimento público das boas práticas; integração prioritária no programa de inovação. Todas as boas práticas da RNBP serão disseminadas pelas outras bibliotecas municipais através de vários métodos: estudos de caso, entrevistas com intervenientes, organização de seminários, organização de estágios, etc.
Estimado Jorge Barreto Xavier,
Concluo sublinhando três ideias centrais: acredito que a redefinição das politicas estatais que estão na base da RNBP é urgente e inadiável; acredito que essa será uma das preocupações prioritárias da SEC sobre sua liderança e supervisão; acredito que os profissionais da RNBP estão interessados e vão estar empenhados no processo de transformação das bibliotecas públicas portuguesas. Está nas suas mãos (enquanto responsável governamental pela área) desencadear esse processo de transformação. O repto fica aqui lançado, espero que aceite o desafio.
Saudações cordiais
Filipe Leal
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