Há quem tenha receitas e definições para tudo. Não é o meu caso.
Comecei a escrever poesia destinada a crianças aos dez anos e a minha iniciação como narradora de histórias deu-se por volta dos treze. Eu própria era apenas uma criança e dirigia-me a crianças muito concretas que, de imediato, me davam as suas opiniões. Foi essa experiência que me fez ter consciência do que era ou não adequado para a infância.
Mais tarde tirei um curso de Letras, embrenhei-me na escrita para adultos, li naturalmente os grandes autores e as grandes teorias e, quando, em 1972, voltei a dirigir-me ao público infantil, possuía certamente mais preparação literária, mais sentido crítico; tinha então dois filhos, ávidos de contos, e, mais uma vez, escrevi para leitores ou ouvintes concretos, analisando a sua psicologia e reação a vocabulários diversos, temáticas e estilos diferenciados.
Hoje vou com grande frequência a escolas e, também aí, me é dado o retorno aos meus escritos por parte de milhares de alunos.
Com esse conhecimento básico, que considero essencial, sinto-me muito à vontade para abordar todos os assuntos, optar por novas experiências.
Já tenho feito livros por encomenda, até para fins didáticos, mas o meu gosto é embrenhar-me na escrita como numa floresta, inventando enquanto escrevo, divertindo-me ou sofrendo com os personagens pois acho que os livros têm de passar pelo âmago mais íntimo dos escritores para serem verídicos e sentidos. Não penso: vou escrever para o jardim escola, ou para o 1º ciclo, ou para adolescentes. Escrevo, arrastada pela força mágica das palavras encadeadas, e no fim é que poderei definir qual o destino de uma obra.
Pessoalmente aprecio os jogos de palavras, o humor, interessa-me passar uma visão do mundo mas abstenho-me de mensagens demasiado explícitas. As crianças não são adultos atrasados mentais, têm grande perspicácia e sensibilidade. Para elas nada é bom demais. Só aprenderão a amar a língua portuguesa se lha apresentarmos de uma forma insinuante, embora aparentemente simples. Mas tal simplicidade pode exibir um aturado labor por parte de quem escreve. Eu, às vezes, ando com uma frase dias e dias na cabeça para a melhorar.
Há quem considere que é na criança que fomos que vamos encontrar a nossa inspiração mais profunda. Decerto essa criança vive ainda em nós, manda-nos recados, será a principal inspiradora de alguns escritores mas, para quem não for saudosista nem viva numa torre de marfim, todas as crianças do mundo se nos dirigem. Pessoalmente, através de comunicação social, das leituras que fazemos.
Passar valores através da literatura infantil numa sociedade em que eles vacilam? Quer queiramos, quer não, passamo-nos a nós próprios no que escrevemos e acho que tal basta. Muitas vezes os professores procuram exigir-nos catecismos de regras morais ou cívicas mas tais caminhos não me aliciam nem seduzem os mais novos que terão de descobrir por si, na vida e nas obras que lêem, as diretrizes que os poderão guiar.
O que é escrever para crianças? É fitá-las nos olhos, falar com elas por escrito, de coração aberto, sem abdicar da inteligência, da experiência, do domínio da palavra.
Luísa Ducla Soares
(escritora)
Quando se perde o instinto, o natural, perde-se a parte mais importante de nós.
ResponderEliminarNão se é um bom escritor para crianças se apenas soubermos a técnica e a teoria, é necessário ser-se, como a LDS aqui tão bem diz:«É fitá-las nos olhos, falar com elas por escrito, de coração aberto».
As crianças, enquanto leem, com mais ou menos consciência, vão absorvendo vocabulário, frases, cenas, desenlaces, figuras e, quando a "coisa" verdadeiramente acontece, emoções, revelações, segredos…
ResponderEliminarParabéns pelo texto!
ResponderEliminar"As crianças não são adultos atrasados mentais" - antigamente, quase todos os adultos pensavam que eram. Hoje, são menos, mas são ainda demais.
Estudos recentes afirmam que o processo cognitivo das crianças (até dos bebés) é idêntico ao dos adultos. Nós temos é mais coisas aprendidas, que nos permitem dar saltos imediatos no entendimento.
ResponderEliminarAté por isso a responsabilidade de quem escreve para crianças ser total, por serem responsáveis pela forma como as nossas crianças irão aprender o mundo. E eu não gostaria que a minha filha visse o mundo como atrasada mental...
Concordo plenamente e sem reservas, Nuno.
EliminarAtrasados mentais são alguns adultos que possivelmente nunca leram, quando crianças e muito menos depois de adultos e, consequentemente, nunca conseguiram aprender ao longo da vida. Os saltos que deram não se concretizaram no entendimento, por mais que tivessem "ido à escola" ou "pulado no curriculum académico".
Quem está por detrás do fim do programa cultural 'Câmara Clara', que ao longo de 6 anos constituiu um exemplo de serviço público prestado pela RTP, faz parte deste grupo de adultos.
Rui Beja