O texto deve ser defeituoso. Não deve ser capaz de andar sozinho, como se tivesse pernas, como se não precisasse de ajuda para andar, como se não precisasse da imagem para saber caminhar. Se o texto for autónomo e capaz, se não precisar de nada além de si mesmo, é apenas isso. Pode ser um texto excelente, mas é um texto que grita, que nos diz: não preciso de mais nada. Não preciso de ilustrações.
A relação entre o escritor e o ilustrador deve ser, quando penso nisso, como um corpo: uns ficam com os intestinos e com os rins e os outros com o que se vê. A ilustração deve ser um corpo do avesso, a mostrar o que está dentro usando a parte de fora. A questão não deve ser exibir as vísceras, mas sim, o que lhes corresponde cá fora: os cabelos, a pele, os lábios, os olhos a piscar, os dentes, os sapatos, o umbigo, as tatuagens e as mãos. E tudo isso é exactamente o que está dentro, mas de outra maneira, como um avesso.
E o escritor deve saber respirar. As palavras têm de ter espaço entre elas para serem vistas mais eficientemente. As palavras precisam de deixar espaço para o que se vê. Precisam de saber calar-se. Não podem ocupar todas as folhas, usurpar todas as descrições. Em vez de dizerem que aqueles lábios são carmim, devem apenas apontar para o rosto, e, então, entra o trabalho do ilustrador que determinará a cor dos lábios. Uma parte da descrição pertence-lhe. Um texto que chega a um editor e não precisa de desenhos para ser compreendido, é um texto que não precisa de ser ilustrado. Ou melhor, não precisa de decoração, que seria o que, provavelmente, o esperava, pois nesse caso, as palavras bastavam. Não há nada de mal nisso, mas se queremos um livro com ilustração, é preciso que haja lugar para a ilustração e isso não é um espaço na folha, é um espaço entre as palavras, entre o que não é dito.
E o escritor, creio, deve saber mostrar com as suas palavras, que são vísceras, o que lhe vai na pele. Do mesmo modo que o ilustrador deve mostrar na pele o que lhe vai por dentro. Ou seja, devem ser um corpo. Não fazem a mesma coisa, não mostram a mesma coisa, mas são efectivamente um todo.
Afonso Cruz
(Escritor e Ilustrador)
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