Tenho andado a puxar pela cabeça e a tentar recordar quando
foi que li The business of the book pela
primeira vez. Imagino que tenha sido na época em que frequentava o curso de
especialização em técnicas editoriais na FLUL mas não consigo recordar as
circunstâncias particulares ou quem mo emprestou na versão inglesa há mais de 10 anos.
Naquela altura o livro serviu-me unicamente para perceber o
que acontecia lá fora. Por cá, apesar de já ter havido algumas tentativas e a
chegada de alguns capitais estrangeiros, estava ainda para chegar o tempo das
concentrações. O livro deu-me, sobretudo, bases de pensamento sobre a edição e
aquilo que queria fazer.
Recentemente, tendo saído a primeira tradução portuguesa, de
forma tardia mas em termos contextuais, no que ao nosso país concerne, na altura certa, reli o livro na
tradução portuguesa e o efeito foi outro. Se quando li o livro pela primeira
vez eu tinha ainda uma experiência limitada a alguns meses de assistente editorial,
agora tenho uns 13 anos de trabalho como editor quer em pequenas editoras quer
num grande grupo, isto para além de ter podido privar ao longo dos anos com
profissionais das mais diversas áreas e que trabalham, também
eles, em pequenas, médias e grandes editoras e grupos editoriais. O efeito
desta leitura foi estonteante.
Ainda antes de falar sobre a questão que quero aqui abordar,
fica de novo a recomendação entretanto já muito repetida, da leitura deste
livro para qualquer pessoa que queira saber a lógica e os mecanismos que ditam
a oferta cultural. Apesar de o livro se centrar na questão do livro (como também os
primeiros capítulos do seu mais recente Words
& Money, Verso, 2010), é fácil extrapolar essa leitura a quase todas as
denominadas indústrias culturais.
Aquilo que quero realçar é sobretudo a análise dos processos
de concentração mas sobretudo dos modelos de gestão aplicados a esses grandes
grupos.
Nos anos 70, num congresso da UNESCO foi definido que o
livro deveria ser considerado como uma “mercadoria cultural”. Esta definição
pressupunha um entendimento de que quem gere uma empresa editora tem de ter
formação em gestão mas não pode ser um gestor tout court. Tem de ter também uma
formação cultural. Aquilo que se procurava transmitir era a necessidade de
formação específica para os gestores das indústrias culturais. E que, mais do
que em qualquer outra área, deveriam trabalhar nas empresas editoras apenas os
gestores com gosto para o produto e com conhecimento específico do mercado.
A. Schiffrin faz em O
negócio dos livros uma análise da evolução do mercado americano e em
particular dos processos de concentração que o mesmo sofreu ao longo do século
XX. As últimas conclusões e as impressões que deixa no final do livro
comprova-as, dez anos transactos, nos primeiros capítulos do seu mais recente
título (o já referido Words & Money).
Aquilo sobre o que irei falar será uma abordagem muito
condensada dessa análise feita por Schiffrin e que, de forma alguma, dispensa a
leitura do livro. Não farei grandes paralelos com a situação portuguesa por
vários motivos entre os quais estão o facto da diferença na dimensão do
mercado, a diferença nos hábitos de consumo e sobretudo do tratamento dado
pelos leitores ao livro e a própria natureza diversa entre os grupos/pessoas
responsáveis pelos processos de concentração cá e lá. O que me interessa
focar é o que se passa no interior das empresas após os processos de
concentração, ou seja, os efeitos concretos que os modelos de gestão aplicados
produzem, esses sim geralmente semelhantes em qualquer parte do mundo.
Dessa forma o que se segue é um resumo despido de outros dados e
simplificado (mas não distorcido) que se centra nesta perspectiva. Por outro
lado cumpre frisar novamente que estou a sintetizar o que Schiffrin diz sobre o
mercado americano e que apesar de haver linhas gerais que tocam o mercado
português (cujos paralelos e diferenças focarei brevemente mais adiante) e outros, nem
tudo decorre da mesma forma ou pelos mesmos motivos.
Vejamos então o que nos relata Schiffrin:
Quando uma editora é comprada para integrar (ou formar com
outras) um grupo, isso acontece porque essa editora tem uma boa reputação no
mercado (independentemente da sua situação financeira). Paralelamente a este
motivo só há mais dois possíveis: erro e ou troca de favores.
Ainda assim, a generalidade das editoras adquiridas têm uma
saúde financeira suficiente para se ir mantendo. Os editores e gestores das
firmas iniciais estão nelas geralmente por gosto (e isto é tão mais verdade
quanto mais próxima a empresa estiver dos seus fundadores). Quem trabalha em
editoras que são criadas para serem editoras, tem intenções, tem projectos e tem
concepções próprias. Não se está nem se vai para a edição para ficar rico. Há
muitas áreas em que isso é infinitamente mais fácil. Não, quem vai para uma
editora ou quem cria uma editora, fá-lo para fazer a diferença ou, pura e
simplesmente, por gosto.
A maior parte das editoras, até como estratégia de
sobrevivência, cria linhas editoriais (ou chancelas ou submarcas) para publicar
títulos que lhes permitem o encaixe financeiro para publicar aquilo que nas estratégias,
projectos, intenções e concepções que definem a identidade de cada editora, é o
núcleo identitário da referida editora.
Incorporada num grande grupo, uma editora vê, em primeiro
lugar serem-lhe impostos desde logo objectivos anuais de lucro e crescimento
(duas coisas diversas)geralmente superiores a 15% (normalmente na mesma
proporção dos lucros esperados por outras áreas de negócio dentro dos grandes
grupos – no caso dos EUA, das corporações de multimédia). Ora estes objectivos
não são possíveis junto do mercado do livro. E não são possíveis porque, na mais
optimista das hipóteses, o mercado estará estagnado em termos de número de
leitores sendo que o mais provável é que tenda a decrescer.
Por outro lado – então no mercado americano! – o livro
digital reduz drásticamente o encaixe financeiro das editoras (nem sequer
tocarei na questão da facilidade da pirataria que continua a possibilitar que
qualquer e-book esteja geralmente pirateado na internet no máximo 1 mês após a
sua publicação). [Schiffrin apenas aborda esta questão ao de leve em Words & Money.]
Os gestores dos grupos adquirentes impõem estas metas (e
muitas outras detalhadas no livro) porque ao tomarem conta das contas de uma
editora percebem a gestão anterior como caótica e desorganizada [há gestores
que mesmo após anos nunca chegam a perceber a mecânica financeira das
colocações/vendas/devoluções]. A sua percepção é que com uma gestão linear e “profissional”,
aquela empresa que tinha boa reputação e até poderia ter algum lucro, poderá ir
bem mais longe. Então se esse crescimento e lucro de pelo menos 15% acontece
com outras áreas de negócio em que o grupo está envolvido, porque não também
ali?
Claro que aí, a sua análise procura logo e de imediato a
rentabilização: essa passa por processos muito “standardizados”:
- Eliminação dos fundos de catálogo (sem terem a percepção que
são as vendas regulares de poucos exemplares dessas centenas ou milhares de
títulos que garantem o cash flow regular de uma editora e que são esses títulos
que definem a identidade da editora)
- Redução do pessoal (para quê ter um editor por área quando
há áreas tão próximas? Jardinagem e Culinária não são quase a mesma coisa? Mais
uma vez se destrói a identidade das linhas editoriais)
- Centralização de recursos (por exemplo serviço de
encomendas. Despersonalizando a relação com o cliente sob o pretexto de o
personalizar “melhor”)
- Aquisição de mais editoras (afinal se o número de leitores
e portanto a dimensão do mercado não são elásticos e pelo contrário tendem a
diminuir e face à perda de identidade da editora a dispersar o seu interesse
por outras editoras, a única forma de alcançar os objectivos de crescimento, é
a aquisição)
- Aumento do salário dos gestores e directores e criação de
bónus por objectivos de vendas (afinal se o número do pessoal é cada vez menor
e se se está a exigir a muitas dessas pessoas que produzam resultados que nunca
produziram na vida, devem ser remuneradas em função das exigência. Aqui convirá
ressalvar que lá como cá, quem trabalha na edição por gosto pouco ou nada
recebe. Schiffrin conta como após cada aquisição os directores e gestores
passaram a auferir salários equivalentes aos de gestores e directores nas
outras empresas do grupo de áreas totalmente diferentes)
- Fixação de objectivos comerciais título a título (os
livros já não podem ser publicados em função de uma estratégia: um editor não
pode já justificar que está a fazer 3 títulos comerciais para que haja margem
de manobra para fazer “aquele” título que vai perder dinheiro – no entanto
esses gestores quando questionados sobre que tipo de livros é que a sua editora
publica em festas ou eventos sociais e culturais, mencionam sempre os autores de
prestígio contra cujas projecções de vendas vociferam nas reuniões de discussão
de planos)
- Fixação de metas temporais para a concretização de
objectivos financeiros por livro (nenhum livro que não tenha resultaodos
positivos num ano é sequer considerado. Reparem agora que tipo de livros é que
esta situação elimina à partida:
- Livros cujos custos de produção
tornam a primeira edição praticamente não-lucrativa, mesmo que depois se possa
estimar que o livro em edições seguintes consiga render milhões
- Qualquer tipo de livros cujas
vendas possam mesmo ser excelentes mas cujos resultados estimados de vendas se
diluam ao longo dos anos (ou seja não adiantará nada um editor dizer: “este
livro é semelhante ao livro Z do nosso catálogo que em 10 anos vendeu 200.000
exemplares” quando a expectativa é que o livro não venda mais do que XXXX
exemplares no primeiro ano)
- Novos autores (impossíveis de
projectar)
- Novos tipos de livro / novas
experiências literárias / obras diferentes de tudo quanto está disponível no
mercado (i.e. leia-se, a evolução da literatura; impossíveis de estimar)
Após estes e alguns outros processos-tipo há duas
possibilidades para o grupo detentor da empresa:
a) A venda imediata de um concentrado de editoras com um valor de mercado muito superior (mas cujo volume de negócios tende a cair), um grupo de editoras totalmente descaracterizado e com uma estrutura interna a funcionar nos limites da sua capacidade e portanto muito leve
b) A manutenção do concentrado de empresas no grupo o que leva em poucos anos a grandes perdas de valor de mercado porque os factores acima indicados tornam-se demasiado evidentes para o mercado.
E a consequência natural são despedimentos em massa, reformulação dos modelos de organização e dos catálogos com vista a fixarem-se unicamente nos best-sellers.
Claro que um processo semelhante passa-se do outro lado da
barricada, nas livrarias. Em conjunto estas evoluções levam à criação de um
mercado que se auto-alimenta das ilusões dos gestores e é totalmente cego e
surdo aos compradores.
O mercado resultante destas transformações é um mercado
homógeno, com uma oferta homógena que vive de estatísticas tão facilmente
pervertidas como isto: se os destaques nas montras e bancadas de destaque das
livrarias são sempre para livros to tipo Y que acaba por ter um destaque de
mercado percentualmente bem acima de qualquer outro tipo, as estatísticas
naturalmente revelam que o público compra mais livros do tipo Y.
Ao fim de toda esta transformação – que é bem mais rápida do
que aquilo que as pessoas pensam – o mercado perdeu toda e qualquer
diversidade, o grosso de leitores passa a ser “formatado” pela oferta “formatada”
e quem lhe resiste tem de se deslocar a livrarias alternativas – que a cada dia
desaparecem porque são esmagadas pelas grandes editoras e grandes grupos
livreiros – no sentido de comprar livros alternativos.
O resultado a longo curso tem um elevadíssimo peso social:
mata-se o público da diversidade e forma-se um público da homogenia e do
facilitismo.
André Schiffrin reclama para si e para quem vê como ele
estas evoluções do mercado a necessidade de intervir a bem da sociedade. E
sobre esse ponto já neste blogue o João Carlos Alvim e eu nos manifestámos.
O caso português poucas diferenças tem no que toca ao modelo
de gestão. As diferenças estão em que as livrarias e editoras quando
adquiridas, geralmente são-no porque têm péssima saúde financeira derivada de
motivos já sobejamente abordados neste blogue. Os grupos adquirentes não são
gigantes com investimento em áreas muito diversas (os poucos que existem neste
país não querem de todo envolver-se nas indústrias culturais. Fora estas
pequenas diferenças e umas poucas mais, em tudo o resto a situação é igual.
Os dados revelados por André Schiffrin neste seu livro bem
como em Words & Money levam à
constatação que apenas o procedimento a) acima
descrito e mesmo aí só nalguns casos, permite que o investidor ganhe dinheiro.
Não pela venda ou produção de produtos (livros), de prestígio ou qualquer outro
factor; ganha dinheiro comprando e vendendo empresas que entretanto
despersonalizou, estripou e vulgarizou.
Schiffrin apresenta algumas propostas de solução em O negócio dos livros como mais tarde
em Words & Money, mas, essas sim,
são propostas que passam muito pela realidade americana ou pela realidade de
países com dimensão de mercado que permite a sua concretização. Mesmo quando
aborda a alternativa norueguesa, não podemos pensar na sua aplicabilidade para
Portugal porque o grosso da população norueguesa lê regularmente livros o que
faz com que, mesmo tendo uma população bastante inferior à portuguesa, a
dimensão do seu mercado do livro seja muito maior do que a nossa.
Talvez seja chegada a altura de se começar a discutir as
soluções para a edição nosso país e pensar em modelos próprios assentes na
obrigação que todos os que trabalham no sector devem sentir, de formar novos
leitores. Claro que quem é gestor numa editora mas no mês seguinte pode estar a
gerir uma fábrica de condutores eléctricos, não sente a pressão de encontrar
soluções. Ainda assim fica, mais uma vez que já o venho afirmando desde há
anos, o desafio.
[Por último os parabéns à Letra Livre pela edição do livro.
Comprei-o e tenho vindo a recomendar amiúde. Parabéns ao Vítor Silva Tavares
pelo excelente prefácio. Aos tradutores por uma tradução quase perfeita,
malgrait a habitual confusão entre 'reedição' e 'reimpressão' que torna algumas
frases difíceis e um tau-tau na
paginação. Se estou a ser rigoroso é porque o livro o merece. Até o Vítor Silva
Tavares trocou um 'ó' por um 'oh'. E eu, no texto acima, devo ter-me fartado de
dar calinadas. Assim dói a todos.]
Não tendo ainda lido a edição portuguesa não posso opinar da bondade da edição, mas em relação ao resto, concordo em pleno contigo.
ResponderEliminarA homogeneização de processos vem da homogeneização de mentalidades.
Como dizia o J. Ramón Ribeyro, há uma grande diferença entre cultura e erudição, cultura não é acumulação de informação, é capacidade de perceber e relacionar.
O que curiosamente é muito parecido com a definição de inteligência ;)
ResponderEliminarHá quem diga que a cultura «é» a medida da inteligência dos Homens, mas não quero ir por aí que se presta a muito maus entendimentos.
ResponderEliminarPrezado Hugo Xavier, no decurso de uma investigação (quase arqueológica) sobre traduções de uma obra em particular, gostaria de solicitar a sua ajuda na resolução de um mistério editorial (pistas: Carroll, nursery, Vega, 1993). Se estiver disposto a colaborar, o meu e-mail está às suas ordens (helena.a.f.mourao no gmail). Antecipadamente grata, Helena Mourão.
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