6/19/2013

Gestão da 'mercadoria cultural' livro



Tenho andado a puxar pela cabeça e a tentar recordar quando foi que li The business of the book pela primeira vez. Imagino que tenha sido na época em que frequentava o curso de especialização em técnicas editoriais na FLUL mas não consigo recordar as circunstâncias particulares ou quem mo emprestou na versão inglesa há mais de 10 anos.

Naquela altura o livro serviu-me unicamente para perceber o que acontecia lá fora. Por cá, apesar de já ter havido algumas tentativas e a chegada de alguns capitais estrangeiros, estava ainda para chegar o tempo das concentrações. O livro deu-me, sobretudo, bases de pensamento sobre a edição e aquilo que queria fazer.

Recentemente, tendo saído a primeira tradução portuguesa, de forma tardia mas em termos contextuais, no que ao nosso país concerne, na altura certa, reli o livro na tradução portuguesa e o efeito foi outro. Se quando li o livro pela primeira vez eu tinha ainda uma experiência limitada a alguns meses de assistente editorial, agora tenho uns 13 anos de trabalho como editor quer em pequenas editoras quer num grande grupo, isto para além de ter podido privar ao longo dos anos com profissionais das mais diversas áreas e que trabalham, também eles, em pequenas, médias e grandes editoras e grupos editoriais. O efeito desta leitura foi estonteante.

Ainda antes de falar sobre a questão que quero aqui abordar, fica de novo a recomendação entretanto já muito repetida, da leitura deste livro para qualquer pessoa que queira saber a lógica e os mecanismos que ditam a oferta cultural. Apesar de o livro se centrar na questão do livro (como também os primeiros capítulos do seu mais recente Words & Money, Verso, 2010), é fácil extrapolar essa leitura a quase todas as denominadas indústrias culturais.

Aquilo que quero realçar é sobretudo a análise dos processos de concentração mas sobretudo dos modelos de gestão aplicados a esses grandes grupos.

Nos anos 70, num congresso da UNESCO foi definido que o livro deveria ser considerado como uma “mercadoria cultural”. Esta definição pressupunha um entendimento de que quem gere uma empresa editora tem de ter formação em gestão mas não pode ser um gestor tout court. Tem de ter também uma formação cultural. Aquilo que se procurava transmitir era a necessidade de formação específica para os gestores das indústrias culturais. E que, mais do que em qualquer outra área, deveriam trabalhar nas empresas editoras apenas os gestores com gosto para o produto e com conhecimento específico do mercado.

A. Schiffrin faz em O negócio dos livros uma análise da evolução do mercado americano e em particular dos processos de concentração que o mesmo sofreu ao longo do século XX. As últimas conclusões e as impressões que deixa no final do livro comprova-as, dez anos transactos, nos primeiros capítulos do seu mais recente título (o já referido Words & Money).

Aquilo sobre o que irei falar será uma abordagem muito condensada dessa análise feita por Schiffrin e que, de forma alguma, dispensa a leitura do livro. Não farei grandes paralelos com a situação portuguesa por vários motivos entre os quais estão o facto da diferença na dimensão do mercado, a diferença nos hábitos de consumo e sobretudo do tratamento dado pelos leitores ao livro e a própria natureza diversa entre os grupos/pessoas responsáveis pelos processos de concentração cá e lá. O que me interessa focar é o que se passa no interior das empresas após os processos de concentração, ou seja, os efeitos concretos que os modelos de gestão aplicados produzem, esses sim geralmente semelhantes em qualquer parte do mundo.

Dessa forma o que se segue é um resumo despido de outros dados e simplificado (mas não distorcido) que se centra nesta perspectiva. Por outro lado cumpre frisar novamente que estou a sintetizar o que Schiffrin diz sobre o mercado americano e que apesar de haver linhas gerais que tocam o mercado português (cujos paralelos e diferenças focarei brevemente mais adiante) e outros, nem tudo decorre da mesma forma ou pelos mesmos motivos.

Vejamos então o que nos relata Schiffrin:

Quando uma editora é comprada para integrar (ou formar com outras) um grupo, isso acontece porque essa editora tem uma boa reputação no mercado (independentemente da sua situação financeira). Paralelamente a este motivo só há mais dois possíveis: erro e ou troca de favores.

Ainda assim, a generalidade das editoras adquiridas têm uma saúde financeira suficiente para se ir mantendo. Os editores e gestores das firmas iniciais estão nelas geralmente por gosto (e isto é tão mais verdade quanto mais próxima a empresa estiver dos seus fundadores). Quem trabalha em editoras que são criadas para serem editoras, tem intenções, tem projectos e tem concepções próprias. Não se está nem se vai para a edição para ficar rico. Há muitas áreas em que isso é infinitamente mais fácil. Não, quem vai para uma editora ou quem cria uma editora, fá-lo para fazer a diferença ou, pura e simplesmente, por gosto.

A maior parte das editoras, até como estratégia de sobrevivência, cria linhas editoriais (ou chancelas ou submarcas) para publicar títulos que lhes permitem o encaixe financeiro para publicar aquilo que nas estratégias, projectos, intenções e concepções que definem a identidade de cada editora, é o núcleo identitário da referida editora.

Incorporada num grande grupo, uma editora vê, em primeiro lugar serem-lhe impostos desde logo objectivos anuais de lucro e crescimento (duas coisas diversas)geralmente superiores a 15% (normalmente na mesma proporção dos lucros esperados por outras áreas de negócio dentro dos grandes grupos – no caso dos EUA, das corporações de multimédia). Ora estes objectivos não são possíveis junto do mercado do livro. E não são possíveis porque, na mais optimista das hipóteses, o mercado estará estagnado em termos de número de leitores sendo que o mais provável é que tenda a decrescer.

Por outro lado – então no mercado americano! – o livro digital reduz drásticamente o encaixe financeiro das editoras (nem sequer tocarei na questão da facilidade da pirataria que continua a possibilitar que qualquer e-book esteja geralmente pirateado na internet no máximo 1 mês após a sua publicação). [Schiffrin apenas aborda esta questão ao de leve em Words & Money.]

Os gestores dos grupos adquirentes impõem estas metas (e muitas outras detalhadas no livro) porque ao tomarem conta das contas de uma editora percebem a gestão anterior como caótica e desorganizada [há gestores que mesmo após anos nunca chegam a perceber a mecânica financeira das colocações/vendas/devoluções]. A sua percepção é que com uma gestão linear e “profissional”, aquela empresa que tinha boa reputação e até poderia ter algum lucro, poderá ir bem mais longe. Então se esse crescimento e lucro de pelo menos 15% acontece com outras áreas de negócio em que o grupo está envolvido, porque não também ali?

Claro que aí, a sua análise procura logo e de imediato a rentabilização: essa passa por processos muito “standardizados”:

- Eliminação dos fundos de catálogo (sem terem a percepção que são as vendas regulares de poucos exemplares dessas centenas ou milhares de títulos que garantem o cash flow regular de uma editora e que são esses títulos que definem a identidade da editora)

- Redução do pessoal (para quê ter um editor por área quando há áreas tão próximas? Jardinagem e Culinária não são quase a mesma coisa? Mais uma vez se destrói a identidade das linhas editoriais)

- Centralização de recursos (por exemplo serviço de encomendas. Despersonalizando a relação com o cliente sob o pretexto de o personalizar “melhor”)

- Aquisição de mais editoras (afinal se o número de leitores e portanto a dimensão do mercado não são elásticos e pelo contrário tendem a diminuir e face à perda de identidade da editora a dispersar o seu interesse por outras editoras, a única forma de alcançar os objectivos de crescimento, é a aquisição)

- Aumento do salário dos gestores e directores e criação de bónus por objectivos de vendas (afinal se o número do pessoal é cada vez menor e se se está a exigir a muitas dessas pessoas que produzam resultados que nunca produziram na vida, devem ser remuneradas em função das exigência. Aqui convirá ressalvar que lá como cá, quem trabalha na edição por gosto pouco ou nada recebe. Schiffrin conta como após cada aquisição os directores e gestores passaram a auferir salários equivalentes aos de gestores e directores nas outras empresas do grupo de áreas totalmente diferentes)

- Fixação de objectivos comerciais título a título (os livros já não podem ser publicados em função de uma estratégia: um editor não pode já justificar que está a fazer 3 títulos comerciais para que haja margem de manobra para fazer “aquele” título que vai perder dinheiro – no entanto esses gestores quando questionados sobre que tipo de livros é que a sua editora publica em festas ou eventos sociais e culturais, mencionam sempre os autores de prestígio contra cujas projecções de vendas vociferam nas reuniões de discussão de planos)

- Fixação de metas temporais para a concretização de objectivos financeiros por livro (nenhum livro que não tenha resultaodos positivos num ano é sequer considerado. Reparem agora que tipo de livros é que esta situação elimina à partida:

- Livros cujos custos de produção tornam a primeira edição praticamente não-lucrativa, mesmo que depois se possa estimar que o livro em edições seguintes consiga render milhões
- Qualquer tipo de livros cujas vendas possam mesmo ser excelentes mas cujos resultados estimados de vendas se diluam ao longo dos anos (ou seja não adiantará nada um editor dizer: “este livro é semelhante ao livro Z do nosso catálogo que em 10 anos vendeu 200.000 exemplares” quando a expectativa é que o livro não venda mais do que XXXX exemplares no primeiro ano)
- Novos autores (impossíveis de projectar)
- Novos tipos de livro / novas experiências literárias / obras diferentes de tudo quanto está disponível no mercado (i.e. leia-se, a evolução da literatura; impossíveis de estimar)

Após estes e alguns outros processos-tipo há duas possibilidades para o grupo detentor da empresa:

a) A venda imediata de um concentrado de editoras com um valor de mercado muito superior (mas cujo volume de negócios tende a cair), um grupo de editoras totalmente descaracterizado e com uma estrutura interna a funcionar nos limites da sua capacidade e portanto muito leve

b) A manutenção do concentrado de empresas no grupo o que leva em poucos anos a grandes perdas de valor de mercado porque os factores acima indicados tornam-se demasiado evidentes para o mercado.

E a consequência natural são despedimentos em massa, reformulação dos modelos de organização e dos catálogos com vista a fixarem-se unicamente nos best-sellers.

Claro que um processo semelhante passa-se do outro lado da barricada, nas livrarias. Em conjunto estas evoluções levam à criação de um mercado que se auto-alimenta das ilusões dos gestores e é totalmente cego e surdo aos compradores.   

O mercado resultante destas transformações é um mercado homógeno, com uma oferta homógena que vive de estatísticas tão facilmente pervertidas como isto: se os destaques nas montras e bancadas de destaque das livrarias são sempre para livros to tipo Y que acaba por ter um destaque de mercado percentualmente bem acima de qualquer outro tipo, as estatísticas naturalmente revelam que o público compra mais livros do tipo Y.

Ao fim de toda esta transformação – que é bem mais rápida do que aquilo que as pessoas pensam – o mercado perdeu toda e qualquer diversidade, o grosso de leitores passa a ser “formatado” pela oferta “formatada” e quem lhe resiste tem de se deslocar a livrarias alternativas – que a cada dia desaparecem porque são esmagadas pelas grandes editoras e grandes grupos livreiros – no sentido de comprar livros alternativos.

O resultado a longo curso tem um elevadíssimo peso social: mata-se o público da diversidade e forma-se um público da homogenia e do facilitismo.

André Schiffrin reclama para si e para quem vê como ele estas evoluções do mercado a necessidade de intervir a bem da sociedade. E sobre esse ponto já neste blogue o João Carlos Alvim e eu nos manifestámos.

O caso português poucas diferenças tem no que toca ao modelo de gestão. As diferenças estão em que as livrarias e editoras quando adquiridas, geralmente são-no porque têm péssima saúde financeira derivada de motivos já sobejamente abordados neste blogue. Os grupos adquirentes não são gigantes com investimento em áreas muito diversas (os poucos que existem neste país não querem de todo envolver-se nas indústrias culturais. Fora estas pequenas diferenças e umas poucas mais, em tudo o resto a situação é igual.

Os dados revelados por André Schiffrin neste seu livro bem como em Words & Money levam à constatação que apenas o procedimento a) acima descrito e mesmo aí só nalguns casos, permite que o investidor ganhe dinheiro. Não pela venda ou produção de produtos (livros), de prestígio ou qualquer outro factor; ganha dinheiro comprando e vendendo empresas que entretanto despersonalizou, estripou e vulgarizou.

Schiffrin apresenta algumas propostas de solução em O negócio dos livros como mais tarde em Words & Money, mas, essas sim, são propostas que passam muito pela realidade americana ou pela realidade de países com dimensão de mercado que permite a sua concretização. Mesmo quando aborda a alternativa norueguesa, não podemos pensar na sua aplicabilidade para Portugal porque o grosso da população norueguesa lê regularmente livros o que faz com que, mesmo tendo uma população bastante inferior à portuguesa, a dimensão do seu mercado do livro seja muito maior do que a nossa.

Talvez seja chegada a altura de se começar a discutir as soluções para a edição nosso país e pensar em modelos próprios assentes na obrigação que todos os que trabalham no sector devem sentir, de formar novos leitores. Claro que quem é gestor numa editora mas no mês seguinte pode estar a gerir uma fábrica de condutores eléctricos, não sente a pressão de encontrar soluções. Ainda assim fica, mais uma vez que já o venho afirmando desde há anos, o desafio.

[Por último os parabéns à Letra Livre pela edição do livro. Comprei-o e tenho vindo a recomendar amiúde. Parabéns ao Vítor Silva Tavares pelo excelente prefácio. Aos tradutores por uma tradução quase perfeita, malgrait a habitual confusão entre 'reedição' e 'reimpressão' que torna algumas frases difíceis e um tau-tau na paginação. Se estou a ser rigoroso é porque o livro o merece. Até o Vítor Silva Tavares trocou um 'ó' por um 'oh'. E eu, no texto acima, devo ter-me fartado de dar calinadas. Assim dói a todos.]  

4 comentários:

  1. Não tendo ainda lido a edição portuguesa não posso opinar da bondade da edição, mas em relação ao resto, concordo em pleno contigo.
    A homogeneização de processos vem da homogeneização de mentalidades.
    Como dizia o J. Ramón Ribeyro, há uma grande diferença entre cultura e erudição, cultura não é acumulação de informação, é capacidade de perceber e relacionar.

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  2. O que curiosamente é muito parecido com a definição de inteligência ;)

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  3. Há quem diga que a cultura «é» a medida da inteligência dos Homens, mas não quero ir por aí que se presta a muito maus entendimentos.

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  4. Prezado Hugo Xavier, no decurso de uma investigação (quase arqueológica) sobre traduções de uma obra em particular, gostaria de solicitar a sua ajuda na resolução de um mistério editorial (pistas: Carroll, nursery, Vega, 1993). Se estiver disposto a colaborar, o meu e-mail está às suas ordens (helena.a.f.mourao no gmail). Antecipadamente grata, Helena Mourão.

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